PRA QUE RIMAR AMOR E DOR?
(janis joplin, leila diniz, lalu: venha ser feliz)
por Paulo César Teixeira (Foguinho)
publicado originalmente no Não 31, junho de 1978
 
 
o prolongamento

artaud, louco e paranóico, suicida, falando sobre van gogh: "pode-se proclamar a boa saúde mental de van gogh, que durante toda a sua vida somente assou uma das mãos e, além disso, não passou de cortar a orelha esquerda. em um mundo em que todos os dias as pessoas comem vagina cozida na salsa verde ou sexo de recém-nascidos, flagelados e enfurecidos arrancando assim como sai do sexo materno. e não se trata de uma imagem mas de um fato muito freqüente."

van gogh morreu "quando chegou corporalmente a ser o campo de ação de um problema em cujos redores se debate, desde a origem, o espírito inócuo desta humanidade. e não se suicidou em um ataque de insânia, pela angústia de não chegar a encontrar o eu humano, ao contrário, acabava de encontrá-lo, e de descobrir o que era e quem era ele mesmo, quando a consciência geral da sociedade o suicidou".

("surgem dias nos quais o coração sente tão terrivelmente a falta de saída que o surpreende, como uma pancada na cabeça, a idéia de que já não poderá ir adiante")

"além do que, ninguém se suicida sozinho. nunca ninguém está só ao nascer. ninguém está só ao morrer".

não concordo com o papo que o sérigo falou num dos últimos artigos pro não, que jimi hendrix é a alegria, o prazer, o amor, enquanto janis joplin representa o desespero sem saída, a dor, pelo menos a incapacidade de sair dessa. o problema é que é fácil transformar janis joplin na mártir que sofreu para que seus sucessores descobrissem a saída que ela em vida não sacou. o problema é também que sérgio fez de hendrix e de joplin apenas personagens, ilustrações de seu papo. nesse artigo pro não, senti que janis e hendrix entraram na jogada como exemplos, personagensrepresentativosdeépocaseposturas. é que enquanto se bater papo e se escrever artigos encarando o texto como o fluxo de nossas idéias e não como uma coisa com a qual a gente se relaciona, se fica na produção algébrica de conceitos e declarações de princípios e não se discute nada. enquanto não se despe as palavras de seus grilos e retrancas e envolvimentos, os quais podemos substituir pelo sinal gráfico =, se discute tudo menos aquilo que se fala. sérgio evidenciou suas próprias idéias, falou disso e daquilo e citou hendrix e janis, mas não discutiu propriamente nenhum deles. mesmo porque, como ele mesmo reconhece, não sintoniza bem com o som que eles fazem. então fala deles como exemplos vivos de qualquer coisa, mas não pode sentir sua fibra e sua garra. a emoção/razão do som de hendrix e janis fica de lado, para dar lugar à metáfora que simboliza toda uma época e toda uma postura. mas, porra, artaud tinha dito: "e não se trata de uma imagem mas de um fato muito freqüente".

o xico, depois de quatro cervejas, disse: "e a linguagem para o índio é um prolongamento, para o homem é uma projeção".

ficamos aqui alimentando o mito que separa seus próprios símbolos, alegria e dor. dualidade.

o cristianismo ensinou à cuca separar céu/terra, tristeza/prazer, renúncia/amor. muitos daqueles que se opuseram a ele apenas inverteram a regra, deixando-a de cabeça para baixo. mas se enganaram porque não abdicaram das formas de dizer consagradas e correram o risco de restituir polaridade a dois momentos (dor/amor) que pintam confusos e fundidos em nosso corpo.

agnaldo timóteo, em uma de suas últimas canções, lamenta: "por que o criador está no céu e não aqui, nesse mundo cheio de miséria e horror e sofrimento?"

lea melandri, naquele artigo pro beijo, baixando o pau em engels e marx, diz coisas legais sobre a separação céu/terra, pessoal/político, indivíduo/social.

a projeção

tinha uma música antiga que dizia: pra que rimar amor e dor?

ouvi vários papos que terminavam assim: não adianta discutir, eu não gosto porque sinto que não gosto. o desespero sem causa de repente vira postura, vira caricatura e reduto último de nossa dignidade inexistente. se faz do sentimento a última fortaleza ainda não invadida. mas aí é que não se discute o sentimento com suas próprias palavras.

o passo para o abismo, a discussão de seus próprios sentimentos, não depende de uma dose de coragem, pois garoto, esse não é mesmo o momento-de-decisão. o problema não é que essa sociedade-se-baseia-na-repressão-do-indivíduo-sobre-si-próprio, nem mesmo que a essência desse indivíduo é a repressão a si próprio. pra falar a verdade, não acredito que a repressão seja uma forma legal de se falar da política e de tudo o que tem a ver com ela. não se trata de condicionamentos que impedem as pessoas de se reconhecerem entre si. não é a coragem de vencer essa barra que falta. é que somos (eu, pelo menos) mais desajustados que reprimidos. hendrix e janis joplin não tiveram somente a coragem de lutar contra sua repressão mas conseguiram expressar sua alegria e sua fúria e falar de seu amor no desajuste que as condições traziam.

não existem momentos de decisão, porque eles são eternos: é o momento de decisão e em seguida o momento de volta atrás, o momento do prazer e em seguida do medo. não é um negócio de tudo ou nada, é um sempre tudo e nada se (des)fazendo: pra que rimar amor e dor?

revólver, revolvimento perpétuo, revolver, revolução permanente, revolto, revôo, revolutear, não os revoltados mas os que se revoltam.

o que pintou pra mim agora foi: depois de tudo o que já se transou e discutiu, eu penso que os condicionamentos e autoritarismos não conseguem determinar-tudo. prolongamento e projeção.

num outro artigo pro não, o giba fala: "acontece o seguinte: não acredito que exista a 'minha vontade' independente do 'discurso oficial'; o que pode existir é a sua negação. e a 'síntese dialética' desses dois pólos opostos não é o 'discurso oficial' sob uma ótica diferente, é outra coisa. negar significa também negar as negações anteriores. na busca do novo (mas não a busca obsessiva e 'idealista': a busca pela busca). ou melhor: dizer não ao 'não', mas também ao 'não ao não', etc."

apesar de cautelosamente colocar entre aspas os chavões, giba ainda pensa que a tal da minha vontade só pode existir como a negação do discurso oficial, em pólos opostos. giba corre atrás da negação da negação da negação da etc. mas não dá sobrevivência própria à sua busca. pergunto: por que ele não consegue raciocinar sem essa linguagem matemática? entrando no jogo: a afirmação ou coisa parecida não só é um dado anterior como determina sua resposta, a negação.

o louco é aquele que conseguiu criar formas de vida que desprezam a divisão sanidade/loucura.

o equívoco daqueles que querem destruir os papos autoritários é dar-lhes realidade e combatê-los com as mesmas armas.

ainda no papo de antes: janis joplin não é a formalização de um mundo novo que pinta, mas ela canta os elementos de sua presença já percebida agora.

não tô querendo dizer que janis joplin e jimi hendrix são a mesma coisa, que alegria/dor são coisas iguais. mas é preciso transá-los no mesmo momento para compreender suas diferenças. saber que, se janis joplin é o fim de alguma coisa, enquanto que hendrix é o início de outra, os dois pintam no mesmo instante, agora, momento de amor, (re)descoberta do corpo e de sua materialidade inteira.

a estrela da menina sempre foi o brilho da "desesperança", mas se ela em vida não demonstrou claramente ter descoberto a saída, seu canto pinta como um contato real com as coisas, sem volta. seus blues não falavam da postura da alegria, falavam do amor e de suas possbilidades imediatas de prazer. venha ser feliz.

(foguinho)