SOLDADOS DO ESPAÇO
Carlos Gerbase

(Em que se discutem os méritos estéticos e filosóficos do livro de Robert Heinlein e do filme de Paul Verhoeven)

Robert Heinlein é um dos mais respeitados autores de ficção-científica do mundo. Mas, quando Isaac Asimov e Arthur Clarke fizeram seu pacto de mútua glorificação (combinaram que sempre indicariam um ao outro como "o maior escritor de FC do mundo"), ninguém apareceu para tentar incluir Heinlein nesse panteão de seres supremos. Há uma explicação bastante simples para esse semi-desprezo: ao contrário de seus colegas - cientistas e humanistas -, Heinlein é um ex-soldado que perdeu a fé na humanidade. Heinlein, em seus momentos menos inspirados, não consegue disfarçar seu militarismo fascista, em que defende a sobrevivência do mais forte como a única lei natural do universo ("A moralidade do leão tem de ser diferente da do carneiro. Para o leão, não é imoral matar para comer. Senão morreria de fome"). O problema é que Heinlein, em seus momentos mais inspirados, é um escritor muito mais interessante, desconcertante e complexo que a duplinha de bons moços Asimov-Clarke.

"Um estranho numa terra estranha", por exemplo, era livro de bolso dos hippies americanos na década de 60. "Amor sem limites", por exemplo, é o mais ousado texto já escrito sobre o futuro das relações emocionais diante dos avanços da tecnologia genética. E "Soldados do espaço" ("Starship troopers"), por exemplo, é o retrato mais fiel que já li sobre as entranhas da vida militar. Há retratos mais engraçados, como "Bill, herói galáctico", de Harry Harrison, ou mais contundentes, como "Ardil 22", de Joseph Heller, mas é Heinlein - graças à sua experiência pessoal na Marinha dos EUA na Segunda Guerra -, que consegue transformar em palavras esse sentimento quase inefável que toma conta dos recrutas em seus primeiros dias de quartel. Essa sensação de pertencer a algo terrivelmente grande e poderoso, que não tem qualquer compromisso com coisas "humanísticas". No exército, humanista bom é humanista morto.

Devorei muitos livros de Heilein na adolescência, mas só li "Soldados do espaço" nas últimas férias de verão, quase por acaso, ao comprar um exemplar da Coleção Argonauta num sebo da Oswaldo Aranha, pouco antes da viagem para Santa Catarina. Li o romance (mais de trezentas páginas) em dois dias. É, talvez, a obra-prima de Heinlein, porque serve como uma espécie de chave para a compreensão de toda a sua obra. Resumindo ao máximo: garoto de dezoito anos tem que fazer uma opção - uma vida confortável e segura, como um "civil"; ou uma vida infernal e perigosa como "cidadão". Ele escolhe se alistar na Infantaria Móvel e conhecer os perigos do inferno.

A questão filosófica da escolha recai na diferença entre estas duas palavras: civil e cidadão. Ser civil significa viver em sociedade, respeitando suas regras, mas usufruindo de suas inúmeras vantagens. Ser civil é participar de uma engrenagem que tem falhas, solavancos e dificuldades de toda ordem, mas se mantém girando. Ser civil é ser civilizado. É fácil ser civil. Basta acompanhar a engrenagem. Ser cidadão é outra coisa. O cidadão é aquele que, colocando a existência da sociedade (da engrenagem) como um valor mais alto que a sua própria existência, arrisca a vida servindo às Forças Armadas durante um determinado período. Para Heinlein, só deveriam ter direito a voto os cidadãos, porque apenas estes garantem que a engrenagem continue girando. Que as regras continuem a ser cumpridas. Que a civilização se imponha à barbárie. O cidadão garante a sobrevivência do civil.

É bom lembrar que as Forças Armadas de Heinlein são o Exército, a Marinha e a Aeronáutica dos EUA matando nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, e não as Forças Armadas brasileiras matando brasileiros depois do Golpe de 64. De qualquer maneira, quem já serviu ao glorioso E.B. sabe que a matriz ideológico-filosófica dos nossos quartéis foi importada diretamente dos EUA. O problema foi a péssima tradução. Também é bom lembrar que não estou defendendo todas as idéias de Heinlein, assim como não defendo todas as idéias do autor brasileiro contemporâneo que mais admiro - Rubem Fonseca. Defendo, isto sim, os méritos literários da obra de ambos. Fascistas ou não, escrevem pra caralho.

Mas a gênese deste artigo para o "NÃO" não é literária, e sim cinematográfica. Assisti "Soldados do Espaço", de Paul Verhoeven ("Louca paixão", "Robocop", "Instinto Selvagem") em Nova Iorque, no início de novembro, depois de ler, no cartaz, que o filme era baseado no romance de Heinlein. Antes de entrar nos poréns da adaptação, devo dizer que gostei do filme. É bem-humorado, os efeitos especiais são de primeira, as garotas são bonitas, é muito bem filmado, a montagem é poderosa, etc. Resumindo: é boa diversão. Os atores são todos péssimos e o roteiro tem problemas, mas isso não impede que eu goste do filme e o recomende aos leitores do "NÃO", mesmo aos que não curtem muito ficção-científica. É muito melhor, por exemplo, que o chatíssimo "O Quinto Elemento".

O problema é aquela linha do cartaz que afirma: "Baseado no romance de Roberto Heinlein". Não sei a opinião de Heinlein sobre o filme (e a opinião do autor da obra original sempre é muito suspeita), mas, se eu fosse ele, pediria que a palavra "Baseado" fosse trocada para "Inspirado", ou quem sabe pela expressão "Remotamente originado". Já escrevi adaptações para o cinema e para a TV e sempre defendi a absoluta liberdade do roteirista em relação à obra literária sobre a qual trabalha. Mas "Soldados do espaço" não consegue, em momento algum, captar uma fração da essência ideológica, política, filosófica, ou mesmo literária, do livro de Heinlein. Não sobra quase nada. O que sobra é um diálogo de dois minutos, numa sala de aula, sobre a diferença entre ser civil e ser cidadão. Diferença que nunca mais é explorada no filme.

É claro que Hollywood não tem interesse algum além de levar milhões de pessoas ao cinema. E essas milhões de pessoas não têm interesse algum nas idéias de Heinlein sobre a organização da sociedade, sobre eleições e sobre a forma correta de educar as crianças num mundo violento. É uma pena. Pensando bem, talvez o próprio Heinlein não tenha interesse algum além de colocar no bolso o cheque pelo uso de sua obra e do seu nome nos créditos no filme. Talvez ele nunca tenha esperado mais do filme do que ele é. Mas eu esperei, e este é um problema clássico de todas as adaptações. A gente espera encontrar no celulóide, mesmo que minimamente, a representação visual daquilo que mais nos entusiasmou no filme. Nesse campo, o filme fracassa miseravelmente.

A própria guerra do filme não tem nada a ver com a guerra do livro. No livro, os soldados da Infantaria Móvel são desembarcados em planetas hostis vestindo armaduras de alta tecnologia, que amplificam sua capacidade de deslocamento e possibilitam grande poder de fogo. Eles dão saltos gigantescos, explodem pequenas bombas atômicas, comunicam-se por rádio e obedecem a um plano de combate meticuloso. No filme, os soldados não têm qualquer armadura, andam a pé (não têm nem um jipe, coitadinhos) e atiram com uns fuzis não muito mais eficientes que o FAL que eu usava na gloriosa Companhia de Comando da Terceira Região Militar. A razão da diferença? É obvio: se os atorzinhos e atrizinhas do filme (todos retirados de seriados de TV) ficassem dentro de armaduras, os espectadores não veriam seus lindos rostinhos e seus corpos bem malhados.

Este foi o eixo principal da adaptação: retirar do livro de Heilein apenas aquilo que poderia virar imagem de fácil consumo, evitando qualquer indagação sobre o militarismo, verdadeiro "xis" da questão do texto. Agindo assim, os roteiristas perderam a oportunidade de fazer um grande filme, e construíram apenas mais um filme divertido e que dará boas bilheterias. Hollywood é isso aí. Mas não é só Hollywood que é isso aí.

Na adaptação de "A grande arte", de Rubem Fonseca, porque o roteiro transforma o personagem principal em fotógrafo? Pelo mesmo motivo: a procura estúpida do visual. Talvez esse pessoal esteja lendo Syd Field demais. Ou lendo errado. Syd Field não é roteirista (ao contrário do que afirmou a revista "Veja"). Syd Field é um "ledor" de roteiros. Syd Field sabe dizer se este ou aquele roteiro podem virar filme de sucesso e dar dinheiro, mas não sabe o que é uma boa imagem dentro de um filme. A boa imagem será sempre um texto. Se não for um texto, é melhor que vire novela da Globo, ou banheira do Gugu, ou filme de Henrique de Freitas Lima. Na melhor da hipóteses (não é o caso de nenhum dos exemplos citados), pode virar boa diversão.

Por tudo isso, sugiro aos leitores do "NÃO" que assistam ao filme "Soldados do espaço" ANTES de ler o livro de Heinlein, de modo a descobrirem, mais tarde, o quanto aquela história idiota pode ser significante, em vez de (como fiz) procurar significados onde há apenas efeitos especiais. Me parece ser a ordem mais adequada. Ou, se preferirem, esqueçam que existe qualquer relação entre as duas coisas. Quanto aos méritos político-ideológicos da obra de Heinlein, acredito que, após uma leitura atenta de "Amor sem limites", "Soldados do espaço" e "Um estranho numa terra estranha" seja mais fácil compreender, respectivamente, os motivos, os métodos e as conseqüências da permanência de Fernando Henrique Cardoso na presidência da República.