Deseja reestabelecer a conexão?
por Paulo César Teixeira (Foguinho)
 
 
I

(Para ser lida/ouvida, como se fosse ditada com voz ríspida, seca, numa sala enfumaçada, não de cigarro, mas fogão a lenha. Numa noite de inverno, úmida, com o zumzum da noite fria e perigosa da Cidade Baixa, onde vi a vida passar muito rápido.)

Rosito sempre se gabou que eu descia do avião direto para sua casa. E era verdade. Minha ansiedade de chegar a Porto Alegre era a de chegar em sua casa, sentar, dar um silêncio necessário e aí puxar a conversa guardada meses dentro de mim, falar, falar, talvez ninguém entenda tanto a mim quanto ele. Um fenômeno de comunicação intelectiva cuja origem para mim é um mistério indecifrável, mas cujo exercício diário, de uma convivência frequente, assídua, de quase 20 anos, transformou em algo concreto, Talvez tal poder de comunicação eu só tenha experimentado com Isabella, mas então de outro modo, muito mais emocional, menos cognitivo. Com ambos esse poder de comunicação era efetivo.

Por isso, agora, quando o sinto mergulhado no silêncio e na escuridão, penso em seu corpo tão frágil e tão forte, sinto seu cheiro forte, o cheiro de sua casa, que tanto me fez bem. É extraordinário que se sinta tamanho bem estar em simplesmente gozar da companhia de outra pessoa. Era isso que ocorria conosco. Era um bem estar mútuo, base de uma convivência leal, sincera, por vezes rude, áspera, como sabe ser meu amigo, mas nada disso teria sentido se não fosse um convívio de bem-estar, de prazer de estar com. Em nenhum outro lugar eu me sentia tão em paz, tão seguro, tão confortável quanto em sua casa. De tal modo que, na ocasião em que brigamos e ele passou uma temporada em Santa Catarina, continuei frequentando sua casa, diariamente, visitando Martha e Januária. Nessa altura, me sentia como um gato, que se habitua mais à casa que a seu dono. Muitas vezes, o dono vai embora e ele fica na casa com os novos moradores.

Penso em como se é egoísta com a iminência da perda de um amigo. Soluço seco, olhar vazado, diante do vazio indescritível do que será daqui para a frente se eu não puder mais vê-lo, tocá-lo, embora tão poucas vezes tenhamos nos tocado, num abraço mais pressentido e imaginado do que vivido. Sua ausência é para mim a mudança mais radical em minha vida. Nada será como antes. Só porque não poderei mais saltar do avião direto para a sua casa. Muitas vezes, pensei em escrever cartas, acho que ele até gostaria, mas poderia estragar o prazer de desfazer a longa espera e despejar assuntos economizados durante meses para se destrinchar tudo de uma vez só, numa madrugada apenas. De preferência, com o fogo ligado. Frio, fumaça, penumbra, e a floresta que ele tinha na areazinha de inverno. Penso e como dói. Dói seco, barato, por baixo da pele, como caudalosa imagem, rio de dentro, afora, e no exterior do mundo de carne e osso, e tecido e pele, e sangue e dor, muita dor, aqui nesse mundo do lado de fora, eu sigo em frente, jogando as máscaras para suavizar o corte profundo que rasgou seu corpo e me acertou em cheio, à distância, e cujos significado e sensibilidade eu vou descobrir só aos poucos, no passar do tempo, para o resto da minha vida.

Com quem eu vou conversar agora?
 
 

"... Numa peleia das braba
Topei co' a morte de cara
A matungona parada
De olho na minha alma
Eu le pedi, sai da frente
Ou te levanto na espada
Eu sei que a morte eu não mato
Mas deixo toda lanhada..."
 
(De uma música do último disco de Vitor Ramil)
 
II

Rosito morreu numa madrugada de novembro de 1997, depois de ser atropelado com seu triciclo na rua Santana e ficar em coma uns dez dias. Esse texto foi escrito 24 horas depois do acidente, quando estava entre a vida e a morte. Era meu melhor amigo.

Rosito eu conheci em 1978. Encontrei a figura toda torta numa festa da Libelu. Eu vendia o Euacho e morria de vergonha de encarar os fregueses. Ele foi muito simpático. Alguns dias ou semanas depois, cruzei com a figura estranha na Borges de Medeiros. Ele ainda caminhava na época, com dificuldade, mas ía em frente. Deixou o endereço e disse para eu aparecer. Coloquei o papel no bolso e esqueci. Naquele tempo, era comum eu sair depois do almoço e de uma manhã de trabalho na rádio Caiçara. Saía ao léu. Sem destino. Também não tinha muito aonde ir. Acabava no bar do Daiu, batendo papo com o Chico, o anarquista.

Num final de tarde, estava andando desse jeito, quando passei em frente ao seu apartamento, na rua Duque de Caxias. O papelzinho do Rosito continuava no bolso, com outros endereços, para qualquer eventualidade. Não tinha nada para fazer, para variar, e decidi arriscar.

Quando entrei no apartamento do oitavo andar, ele logo me fez subir uma escada para trocar uma lâmpada. Fiquei ali meio sem jeito. Graças a Deus, logo foram chegando pessoas do campus, Carlos Arturi, Cinara, aquela turma. Foi na casa do Rosito, àquela noite, que eu fumei o primeiro baseado da minha vida. Logo vi que deveria voltar outras vezes, porque naquele apartamento aconteciam coisas interessantes.

Depois, saímos, em turma, e fomos a uma sessão do Bristol, acho que era um filme do Herzog, não lembro. Aliás, chapado como nunca mais fiquei na vida, achei as imagens maravilhosas, embora cinco minutos depois não lembrasse de nenhuma cena. Lembro de estar andando na Protásio, com a turma do campus, e o Álvaro Magalhães me dizendo: "Não te preocupa. Tu vai conseguir chegar em casa."

Eu me sentia ótimo, mas devia estar com uma cara de apavorado.

Passei a frequentar a casa do Rosito. Naquele tempo, eu era muito tímido, quase não abria a boca para falar. Naquele apartamento, se reunia o pessoal mais louco da universidade. Eu me sentia deslocado, mas resolvi ser uma testemunha daquela loucura. Outro dia, ouvi o Mick Jagger dizer na MTV que os anos 60 haviam sido muito bons, mas nada comparável ao final da década de 70. Não vivi muita coisa daquela loucura, mas fui uma testemunha atenta e silenciosa, na casa do Rosito. Por ali passou a piração dos anos 70. Espiei como se fosse uma janela.

Muitas vezes, entrava no apartamento, quando tinha um monte de gente fumando, bebendo, conversando fiado. Eu ficava 20 minutos, não dizia uma só palavra, e ía embora. Meu amigo, dono da casa, ficou curioso e comovido com aquele comportamento, talvez mais excêntrico do que o dos malucos oficiais da época.

Era meu melhor amigo e, agora que a dor da perda já começa a se dissipar, como tudo na vida, talvez falar dele seja um belo pretexto para escrever e lembrar de tudo o quanto tenho sido. E me reconectar com o Não.
 

Continua no próximo número.
 
Rio, 11 de maio de 1998.