INTERNET E O ANTI-FAUSTO
por Giba Assis Brasil

Uma vez, ainda na adolescência, eu li um livro de ficção científica de um escritor chamado Clifford Simak. O nome original do livro era apenas CITY, mas eu tenho certeza que os tradutores portugueses da Coleção Argonauta mudaram pra CIDADES PERDIDAS ou CIDADES MORTAS, alguma coisa assim. Tinha dois personagens principais, dois amigos de infância que, ao se tornarem adultos, se afastaram: um filósofo chamado Juwain e um explorador do espaço cujo nome era Krol, ou coisa parecida. Depois de muitos anos de trabalho pelo bem da humanidade, Juwain consegue criar uma filosofia (o Juwainismo) através da qual, pela primeira vez na História, um ser humano pode realmente assumir o ponto de vista do outro, e portanto entendê lo.

Enquanto isso, Krol descobre, num planeta qualquer, uma espécie de seres absolutamente desprezíveis, os Rastejadores, que não fazem outra coisa na vida a não ser, é claro, rastejar. Só que, graças ao Juwainismo, Krol descobre que os rastejadores, exatamente por não terem nenhuma outra preocupação na vida, são os seres mais felizes do universo! Então ele volta à Terra e diz às pessoas: "Todos nós devemos nos transformar em rastejadores e ser felizes para sempre."

Seria apenas mais um pregador maluco, se as pessoas não contassem com o Juwainismo. Mas as pessoas entendem exatamente o que ele quer dizer, e sabem que ele tem razão. Então toda a humanidade (com exceção, claro, do próprio Juwain, que não é bobo) embarca em foguetes e vai pro tal planeta rastejar. Quando o Juwain morre a Terra fica vazia de gente, e as formigas tomam conta das cidades. A história toda na verdade é contada por uma formiga pras outras, antes de dormir, tipo assim "no tempo em que os homens habitavam a Terra".

Dando o desconto de que eu li o livro há mais de 25 anos e nunca o reli, é possível imaginar que a história não fosse exatamente assim como eu acabei de contar. Por outro lado, se ela ficou tanto tempo na minha cabeça é porque eu consegui encontrar nela alguns signos interessantes, que possivelmente tenham adquirido significados diferentes conforme o momento em que eu me lembrava deles.

Hoje, me parece evidente que se trata de uma questão de escolha entre um único valor humano (mesmo que seja o mais precioso de todos eles, no caso a felicidade) em troca de todos os outros possíveis valores igualmente humanos. Eu posso imaginar um diálogo dramático entre Krol e Juwain, que talvez esteja no livro, talvez eu tenha inventado nesses 25 anos, talvez eu esteja inventando agora. Seria um diálogo entre um explorador e um filósofo, ou entre uma pulsão e uma repressão, ou se vocês quiserem entre id e superego, sei lá.

Juwain teria dito que a humanidade não poderia abandonar todas as suas múltiplas possibilidades em troca da felicidade de rastejar, e que Krol não teria direito de usar a filosofia criada pelo próprio Juwain com o objetivo de libertar a humanidade, no sentido de aprisioná-la na forma de um bando de rastejadores. Krol, muito mais pragmático, mas tentando raciocinar em termos filosóficos, diria que talvez o destino último da humanidade, concebido por deus ou por ela própria e sua circunstância, fosse, afinal, rastejar. Estando certo ou não, Krol teria vencido o debate, por nocaute no primeiro assalto.

Alguns anos atrás, eu e meu colega Werner Schünemann estávamos trabalhando numa idéia dele pra um roteiro do que deveria ser um episódio de longa-metragem, em que ele procurava inverter o acordo fáustico. Ou seja: o Fausto mítico é o homem que faz o pacto com Mefisto e abre mão de sua alma eterna, e de sua ligação com Deus, em favor de todas as possibilidades de prazer e de realização agora: o conhecimento, o sucesso, a riqueza, a satisfação amorosa e sexual - enfim, o que a gente poderia chamar simplesmente de "as possibilidades humanas". Então o anti-Mefisto seria o próprio Deus cristão, que oferece ao homem a salvação de sua alma para a eternidade, em troca de que este homem abra mão de algumas de suas possibilidades, ou de sua busca por elas.

Na história do Werner, esta trama era desvendada por um escultor e exposta em sua obra, mas então Deus em pessoa (!) aparecia para refazer o pacto e impedir a revelação. O filme terminou não saindo, por vários motivos. Mas, na discussão do roteiro, eu me lembrei do livro do Simak. Pra mim, na época, parecia que as duas histórias caminhavam no mesmo sentido: uma metáfora não apenas sobre as religiões, mas talvez também sobre a televisão, ou sobre as drogas, ou sobre alguma espécie de fanatismo político ou qualquer coisa que pudesse dar às pessoas uma pequena certeza, uma pequena verdade, mas enfim uma garantia de felicidade dentro de determinados limites, em troca da desistência de procurar e insistir e buscar pro resto da vida todas as outras possibilidades que a existência humana permite ao menos imaginar.

Anti-Faustos seríamos todos nós, que não fazemos o acordo com Mefisto, que não vamos até as últimas conseqüências em nossas buscas humanas: em vez de dar a alma eterna em troca do conhecimento, aceitamos a ignorância que acompanha a felicidade. Aceitamos rastejar. Apesar disso, tanto na minha leitura do Simak como na minha discussão do roteiro do Werner, eu sempre pensei nessa troca de uma forma negativa, limitadora da existência, e mais: sempre como uma coisa externa, que acontecia ou aconteceria aos outros, nunca a mim. Pois bem.

Três meses atrás eu estava na Internet. E, depois de ter enviado algumas mensagens para pessoas em vários pontos do planeta; de ter pesquisado numa espécie de enciclopédia quase ilimitada alguns assuntos que me interessavam também porque poderiam se aplicar ao meu trabalho mas fundamentalmente por mera curiosidade; de ter entrado num chat e me colocado como um personagem fictício interagindo com outros personagens talvez quase reais, aparentemente em função de meu trabalho como ficcionista mas certamente não apenas isso; de repente, a minha linha caiu. E, ao voltar ao mundo real, percebi que eu estava sozinho em casa, já que a minha família tinha viajado, e que eu já estava plugado há mais de seis horas, sem comer, sem fazer a barba, sem tomar banho, com a bexiga cheia. E que eu jamais havia pensado na possibilidade de um instrumento com tal capacidade de conjugar trabalho e prazer.

Mas ainda um instrumento bastante limitado: um 486, com um modem de 14400 bps, uma linha telefônica analógica, etc., movendo-se numa rede que ainda não é sequer a sombra do que pode vir a ser em termos de acúmulo de informações.

Quando, num futuro próximo, os computadores forem ainda mais miniaturizados e se tornarem próteses humanas, quando as conexões ganharem mais velocidade, quando as linhas telefônicas forem todas digitais e móveis, quando enfim tudo o que já foi escrito, desenhado, musicado, fotografado ou filmado pela humanidade estiver na rede, é difícil imaginar em que espécie de seres nos teremos transformado.

Se cada um de nós tiver um computador e um celular dentro do corpo, se estivermos ligados em rede 24 horas por dia, entre nós e a toda a história da cultura humana, seremos o quê? Seremos Juwain, entendendo o outro e portanto nos tornando partes de um todo? Ou seremos Krol, abrindo mão de tudo o que poderíamos fazer sem um computador e um celular, apenas pela felicidade de rastejar?

O que eu sei é que naquela noite, alguns minutos depois de a linha ter caído, depois de ter feito xixi e a barba, e enquanto tomava um lanche, eu voltei a me lembrar da história do Clifford Simak e do Juwain e do Krol ao me sentir incluído nessa negociação anti-fáustica, e ao achar que era isso mesmo, que não havia nada de mau nisso, pelo contrário. No fim das contas, Simak estava falando da Internet! Só não sei ainda se a rede toda é uma espécie de Juwainismo, ou se navegar nela é como rastejar. Provavelmente os dois.

Felizmente, alguns dias depois disso, eu estava vendo o meu filho de 6 anos brincar com um amigo e percebi que eles haviam inventado um brinquedo novo, pra mim absolutamente revolucionário: eles manipulavam velhos bonecos de plástico - soldados, índios, guerreiros, sei lá - e andavam com eles pela casa, da mesma forma como eu fazia mais de 30 anos atrás, mas com uma terminologia que me era desconhecida. Aos poucos, me dei conta que eles haviam simplesmente aplicado a lógica de um vídeo-game - contagem de pontos, passagem de fases, senhas - ao milenar jogo de faz-de-conta com miniaturas. Ao invés de penetrarem no virtual, estavam trazendo elementos do virtual para a realidade. Uma atitude que me parece bem mais saudável que o meu virtual acordo anti-fáustico.

E um último detalhe: na semana passada, pensando em conseguir dados mais concretos para essa conversa de hoje (como por exemplo o nome verdadeiro do Krol), procurei o livro do Simak na Amazon Books On line, auto-definida como a "maior livraria virtual do mundo, com mais de 2 milhões de títulos disponíveis", e encontrei a mensagem: "This book is definitely out of stock" ou coisa parecida. Vou ter que procurar numa velha biblioteca, quem sabe num sebo. Nem tudo está perdido.

(Texto-base para palestra de 10 de junho de 1997, na Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, evento INTERFACES: CINEMA E INTERNET.)