Quando homem era homem
por Marcelo Carneiro da Cunha

 

Além de servir de epitáfio pra quem analisa o destino da espécie em uma noite de sexta ou sábado num clima clubber do Fim de Século, o título pode oferecer outras leituras, que levam a este ensaio, pra começo de conversa.

Porque houve um tempo em que os homens eram homens, e os vídeo-cassettes eram os vídeo-cassetes, e os aliens eram os aliens, não o contrário.

Tempo houve, senão na prática mais completa, mas na teoria mais aceita, que o negócio era ser o homem e não o alienígina mais malvado da galáxia. Saindo de uma era de trevas movida a Deus em excesso e homem de menos (coisa que se mantém no ambiente restrito dos seminários, imagino), uma coisa que se chamou Iluminismo, no começo, e logo desembocou em Humanismo, decretou que existia um nexo nessa coisa toda chamada experiência humana, e que o nexo, já que havia um, era que o que importava era o homem, e não mais um deus inatingível e ilegível, a não ser pelos poucos privilegiados que soubessem sânscrito ou latim ou ainda algum ramo sunita da arabismo, sem esquecermos o hebraico. O homem era o cara.

Com essa noção revolucionária na cabeça e um bom porrete na mão, fizemos a revolução francesa, a sua versão light pra cá do Atlântico, inventamos e aplicamos o sistema métrico, criamos o tal aeroplano, a aspirina, a cura pra varíola, o Chevette Hatch ( a gente não acertava sempre, deixemos isto bem claro), a igualdade entre os sexos, a desobrigatoriedade dos sexos, um sistema de governo mais ou menos representativo, o Machado de Assis, o futebol, Billie Holiday, a pílula, o Hubble, e a lista continua, e por muito mais, em toda essa corrente de acontecimentos humanos e centrados na noção antropocêntrica que é afinal a modernidade.

E assim íamos nós, felizes e infelizes com a nossa modernidade recém inventada e já produzindo dissidências, Modernidades do B, capitalismo, marxismo, essas coisas, quando iniciou, precocemente, talvez, o desandar da maionese, já pelos anos 30.

Porque nem bem o homem se tornou o centro dos acontecimentos e ele já vira história antiga, parecendo que nossos 15 minutos de palco duraram menos do que isso na história, e já somos colocados em um outro plano.

Um plano onde produzir videocassettes por 50 dólares a menos do que a concorrência justifica colocar 500 paraíbas na rua. Onde terceirizar, globalizar, neoliberalizar e outros termos da época soam demasiado demais como colocar o homem, este incompreendido lá na lateral esquerda, onde se coloca maluco e perna de pau, salvo exceções -, lá onde eles podem causar menos danos e solicitar menos atenção.

E vemos o pessoal falando de custo Brasil, sem nem ao menos se dar conta de que o custo Brasil de que eles falam não são as telecomunicações defasadas, os portos que deixam navios esperando por dias, estrada no mais puro estilo superfície lunar que temos por aí. Custo Brasil somos nós, cara-pálida, que só por estarmos vivos e no território nacional achamos que não precisamos de justificativas melhores ou bons lobbies em Brasilia pra continuar por aqui.

Porque a lógica se inverteu, e virar objeto adquiriu outro sentido, bem diferente do significado mais sexual e agradável da coisa. Objeto é quem não é sujeito, quem não manda porra nenhuma. Porque agora é assim, e eles fazem de tudo. Matam Kenny a cada episódio porque parece divertido, desaparecem com qualquer neguinho que se mostre inconveniente, explicam que a alta dos juros é culpa da Malásia, ou Indonésia, esses pesos-pesados da economia mundial, que tudo vai dar certo, é só a gente ficar quietinho e seguir as instruções. Porque agora bastam 20% do povo pra fazer tudo funcionar e tudo funciona, desde que os 80% que sobram se convençam de que eles precisam fazer a parte deles e comprar vídeo-cassette, e vapporeto e tudo mais que faz a vida feliz e nos torna úteis. Úteis.

Já fomos outra coisa, tão inútil e interessante quando um bichinho da avenca, como diria Nelson Rodrigues. Agora a gente tem que justificar a presença, como um galo em casa que comprou despertador. Precisamos ser úteis, tão úteis quando um telefone, um sofá de sala, um par de óculos ou de tênis. Ou isso ou a gente acorda qualquer dia desses e descobre que agora vive tranquilo e feliz lá na lixeira onde o Windows 95 coloca tudo que não se sabe bem pra que serve. Onde a gente vai poder ver Xuxa e futebol o dia inteiro, onde só vai ter Ratinho e discovery channel, onde a cesta básica é composta por Dunkin Donuts, onde a gente afinal vai encontrar a paz dos justos, se sentindo um feliz arquivo temp. Pelo menos até a hora que alguém resolver apertar delete.

Delete.