Balada para Daniel
por Bela Figueiredo

Parecia um Beta , que em frente ao espelho se avoluma, abre as guelras. Excitação pura! Refletida, Cris arrumou as madeixas trezentas e cinqüenta e sete vezes. Queria que Daniel a visse mais ajeitada do que da última vez. Vestiu a mesma calça jeans, resolveu fazer trancinhas para dar um ar infantil. Andava às turras com o batom sabor morango.

Estar com Daniel é sempre "gostoso como a vida deve ser"!, e sorriu. Mãos nos bolsos, a cara redonda e o sorriso. Cris aprecia homens que a façam sorrir sem parecerem bobos da corte. E o Dani é assim: simpático, comestível, embalado para viagem.

Tenho vontade de esmagar esse guri... Por que tão perfeito?, pensou. Basta a manta de gordura no abdômen para que Cris se apaixone. E o Dani preenche o quesito Delícia.

Quanto maior o tumor, melhor amor. Os caras que lhe faziam a cabeça, todos têm a mesma história: tristes, pai morto e mãe depressiva. A ordem dos fatores não altera o produto, mas a tristeza é a tônica em todos os casos. Carentes, bons moços de olhos tristes.

O pai do Dani morreu tem dez anos. É, ele disse isso à Cris naquela noite fria. Ele padeceu, sabe? O câncer faz metástases em toda a família. Depois que o pai morreu, minha mãe teve três crises depressivas. Quase foi junto com o velho. Mas estamos aí. Não adianta nada, desabafou. Aí sim, Cris de quatro. Basta ouvir uma tragédia para cair em enternecimento profundo. Vontade de pegar esse cara no colo... Mas já não pode. Está casada há dois anos. O maridão em São Paulo fazendo um curso de criação de HP . Aquela era "a" oportunidade da sua vida: hora certa para realizar o crime perfeito que engendrara há algum tempo. Rever o único homem que a fez sentir-se vaporosa - o Daniel. O cara sempre permitiu que Cris fosse apenas ela mesma. O contrário do Roberto, o marido, que jamais admitiu blusinha branca sem sutiã muito menos unhas vermelhas que ela tanto aprecia.

Tenho que desligar o celular. Só isso. Incomunicável e bem longe da fiscalização do Roberto posso ser eu mesma. Nada mais, nem demais. Com o indicador, pressionou a tecla off e se foi, vento no rosto e coração na mão.

Cris não via Daniel desde uns muitos vários anos. Jamais esquecera o rapaz. Até lhe convidara para padrinho do casamento. A recusa explícita se deu em função de uma viagem de trabalho. A desculpa latente era o amor que sentia por ela. Desde o casamento, tinha muita vontade de rever seu Top Of Mind. O Dani eu nunca esqueci, mas não deu. Não sei... essas peças que a vida prega na gente. Um porre certo na hora errada, ele de pau duro e eu murcha. Só isso, chorou. O Dani é bom demais pra mim. Deixa assim...

Maria Cristina Motta, a Cris, entrou no Bar Líder com a labirintite sintomática das situações angustiantes. Retirou um Vertix e engoliu a seco. Em seguida, pegou sua muleta, o cigarro, deu uma longa tragada e engasgou. No exato momento em que se preparava para rever Daniel; o próprio, em carne e pescoço, colocou as mãos sobre os olhos da garota. Adivinha?? Ela sabia que era o Dani, o único e sempre brincalhão.

Alguns litros de cerveja e nenhum beijo depois do papinho pra encher lingüiça, Cris encontrava-se em estado de graça. Olhar pro Dani é receber de volta a alma tomada pelo Demônio. Falaram sobre eleições. Óbvio que votariam no mesmo candidato. E o carnaval, hein??, perguntou o fagueiro Daniel. Estavam, os dois, atrapalhados demais para sair de Porto Alegre. Também conversaram about grana e concluíram que a situação tá ôsca e vai se debruçando.

Daniel e Cristina combinavam em tudo menos no amor. Ele sempre tão... tão perfeito e disposto e amável. Outra feita, Cristina desligada, gostando de uns bons coices que o Dani jamais forneceria.

A noite terminou com um tá, a gente se vê e assinatura do Daniel no cheque atestando mais uma vez cavalheirismo puro. Não que ela gostasse que lhe pagassem a conta, de forma alguma. O Dani é que tem dessas coisas.

Cris entrou no táxi e foi para casa. Em frente ao computador escreveu algo mais ou menos assim:

Qualquer dia eu te pego de jeito
Não sei direito, Daniel
Decido ser feliz
Ter o que sempre quis
Kiss-kiss
Big Mac e cerveja,
nenhuma certeza,
te carrego pra Veneza
bem do teu jeito
e vamos viver de vento
Daniel...
Ao leo.

Dormiu cantarolando a balada cafona de amor pois "o amor é brega que nem pão quentinho saído da padaria", como diria Cazuza. Desde então, balada só com Daniel.

Bela Figueiredo