Mona
por Romir Rodrigues

Durante o trajeto que fazia todas as noites ao voltar do curso pré-vestibular, fiquei recordando a aula de biologia onde o professor falou que as cobras, conforme vão crescendo, trocam a pele, seguem adiante deixando atrás de si uma casca vazia. Era quase meia-noite quando desci do ônibus, o som dos poucos carros que passavam na Assis Brasil parecia um bocejar preguiçoso de uma avenida prestes a dormir. No curto trajeto da parada até a entrada do meu edifício, tentava imaginar como seria se as pessoas tivessem o mesmo processo de crescimento das cobras, aumentassem de tamanho até não caberem mais dentro de suas peles que, rompendo-se, seriam abandonadas.

Percebi que uma pessoa tentava sentar-se com dificuldade na calçada, pelas roupas, um sobretudo cobrindo um pequeno biquíni prateado, devia ser um dos travestis que trabalhavam na frente do terreno baldio do fim da rua. Minha primeira atitude foi fazer-me de desentendido e passar direto. Já estava dando a primeira volta na chave do portão quando vi que ele estava sangrando.

- Você quer que eu chame uma ambulância, ou um táxi? – perguntei meio de longe, como se o fato de não chegar perto me isentasse de um envolvimento maior.

Um fio de sangue corria do estômago da estranha figura para se depositar em um pequena poça que se formava na calçada. A respiração era cortada, como se o ar inspirado vazasse por algum furo no pulmão. Com dificuldade, me respondeu:

- Não. Não chama ninguém! Porque senão a polícia vem junto e daí fica muito pior.

- Mas tu estás perdendo muito sangue, acho que precisas de um médico.

- Obrigado, mas não precisa. Vai passar. Tem um lenço em um dos bolsos do meu casaco, você poderia pegar?

Fiquei pensando se deveria atender ao pedido. Não sabia o que tinha acontecido, todo aquele sangue ali, o vírus da aids, poderia ser tudo um golpe, na hora que eu me abaixasse para ajudar alguém viria por trás para assaltar-me. Quando o travesti virou-se e pude ver o talho, pequena boca a pedir socorro, percebi que não era encenação e decidi ajudar. Procurei o lenço em seus bolsos, peguei-o com a ponta dos dedos para evitar um contato maior e o coloquei em sua mão. Sentei em um pequeno degrau, praticamente ao seu lado, e fiquei observando seu rosto transfigurar-se com a dor, enquanto ele apertava o pedaço de tecido contra o corte, procurando estancar o sangramento.

- Tem mesmo certeza de que não quer que eu peça ajuda?

- Tenho. O que preciso é de um trago. Busca para mim? – terminou de falar me estendendo uma nota de cinco reais que tirara de dentro da parte de cima do biquíni.

Acabei indo buscar a bebida. Gostava quando confiavam em mim, além disso, o gesto me fora familiar, minha avó sempre guardava seu dinheiro dentro do sutiã quando ia sair. No caminho fiquei tentando entender o que estava se passando, por que havia me envolvido, justo eu que em situações limites procurava o anonimato. "O homem invisível", como minha mãe ficou me chamando depois da separação com meu pai, reclamando da maneira apática com que encarei a situação. Ela, a última palavra em todas as ocasiões, qual apelido inventaria se me visse agora, com uma garrafa de cachaça na mão, indo sentar ao lado de um travesti todo ensangüentado? Na verdade, nem eu sabia ao certo o que pensar.

- Isso foi o melhor que eu consegui encontrar – estendi a garrafa. Uma alegria manifestada no brilho dos olhos fez com que ele procurasse uma melhor posição para poder degustar a bebida. Tomou vários goles seguidos como se aquela fosse a melhor bebida do mundo. Depois, levantou a mão que segurava o lenço e derramou um pouco de cachaça sobre o corte.

Instintivamente, coloquei a mão em seu ombro, como se meu toque pudesse aliviar a dor. Ele olhou para mim com um sorriso duplo que, enquanto tentava disfarçar seu sofrimento, procurava me agradecer.

- Valeu mesmo. Colocando essa cachaça vai melhorar. A que eu largo por fora desinfeta e a que eu tomo ajuda a anestesiar. – Enquanto falava ia tomando mais uns goles.

- O que aconteceu? - perguntei já que parecia estar melhorando.

- Começou mais ou menos há um mês atrás, numa dessas noites frias do inverno de Porto Alegre. Eu estava caminhando para esquentar um pouco enquanto esperava. Na minha profissão, a maior parte do tempo consiste em esperar. Foi então que o farol anunciou um carro chegando. Do cano de descarga saía uma nuvem de fumaça como se fosse movido a vapor, feito aquelas locomotivas antigas. Me preparei, abri o casaco, esse mesmo que estou usando, e deixei-me à mostra. O automóvel parou e eu me debrucei na porta o mais insinuante possível. É nessa hora que tu tem que conseguir fisgar o freguês. Depois de uma rápida conversa, entrei e fui alisando a coxa do motorista, de um jeitinho gostoso, para deixá-lo excitado. Fomos para um motel de segunda categoria – continuou falando enquanto apontava a direção –, lá perto do Porto Seco, ali no Sarandi. Por mais que eu tentasse insistir, ele não me chamava pelo nome, era só puto, veado, safado, essas coisas. Quando começa assim, fico com vontade de desistir. Mas, dentro do quarto eu me vingo. Esses que muito xingam, com pose de machão, querem mesmo é ser enrabados, por isso nunca usei silicone, nem tomei hormônio, acaba ficando tudo atrofiado.

A voz afeminada não combinava com a linguagem masculina ou com o tamanho de suas mãos. Lembrei-me que, como o freguês da história, eu também não sabia seu nome.

- Como você se chama?

- Meu nome é Mona. Pelo menos aqui nas ruas é assim que me chamam. E o seu, meu jovem salvador?

Aquela conversa de salvador me deixou encucado. Demorei um pouco a responder e, quando o fiz, resolvi utilizar um nome falso:

- Pode me chamar de Beno. E o resto da história?

Mais uns tragos e Mona recomeçou:

- Cerca de duas horas depois retornamos. O cara do automóvel começou com um papo que só tinha cheque para o pagamento e eu, como só gosto de ser paga em dinheiro, comecei a reclamar. O cara ficou furioso, empolou o peito e levantou a voz. Todo atacado, preencheu o cheque e jogou pela janela do carro ameaçando: "Se quiser vai pegar, seu puto, e trata de ir saindo, senão vai levar umas porradas." Não estava agüentando mais. Comecei a gritar também: "Ficou homem agora é seu merda! Há pouco estava usando minha calcinha e rebolando." O estalo do tapa ficou ecoando no meu ouvido. O cara estava alterado, parecendo um louco, entrei numas de que ele podia estar armado e fiquei com medo. Saí do carro dizendo um palavrão atrás do outro. O cara fechou a porta e arrancou em disparada fazendo o cheque dar voltas pelo calçamento. Ainda estava meio zonza, quando o recolhi do chão. "Fazer o quê?" – pensei. O movimento andava baixo e, como sempre, precisava do dinheiro.

Mona parou de falar fazendo uma careta, instintivamente levou as duas mãos sobre o ferimento e encolheu as pernas. Eu, percebendo tratar-se de uma grande dor, retirei minha jaqueta e, fazendo dela uma espécie de travesseiro, tentei acomodá-la melhor.

- Muito obrigado, você está sendo muito gentil, um verdadeiro cavalheiro. – segurou em minha mão enquanto falava ainda encolhida, mas com o semblante mais tranqüilo. O contato estranhamente delicado e feminino daquela mão suja de sangue e com grandes unhas postiças em quatro dos dedos fez com que deslizasse meu corpo na tentativa de escapar do estranho calor que começou a subir pelo meu braço vindo se concentrar em minha espinha.

– No outro dia fui ao banco – continuou a falar – , vestida de calça jeans e camiseta parecia uma pessoa comum, ninguém lá dentro imaginaria minha profissão. Fiquei em uma fila enorme e quando chegou a minha vez apresentei o cheque ao caixa. O funcionário levantou-se, foi olhar em uma lista e me disse que não podia descontar, pois não tinha fundos. Fiquei sem saber o que fazer, olhava para o papel em minha mão e lembrava a cara do safado. Nem bonito ele era. Saí do banco e fui até um boteco ali perto. Pedi uma cerveja, o garçom abriu a garrafa, serviu um pouco no copo, e ficou esperando o pagamento. Eram os meus últimos trocados. Coloquei o cheque sobre a mesa e fiquei maquinando uma solução. Bebi o primeiro copo de um gole só, enchi novamente, sempre olhando para o pedaço de papel. Foi quando percebi que abaixo da assinatura estava o endereço do desgraçado e decidi ir até lá cobrar. Se fosse necessário, armaria o maior escândalo. Mona parou de falar um pouco, respirando fundo para recuperar o fôlego. Ofereceu-me a garrafa e, enquanto eu ia tomando uns goles, continuou a narrar sua história.

- A casa era bonita, num bairro classe média, janelas gradeadas e, na frente, um jardim com roseiras e algumas margaridas. Apertei a campainha e esperei, estava preparada para esculhambar com tudo. Passou um tempo e ninguém atendeu, pensei em apertar novamente, ouvi uns ruídos do lado de dentro e, timidamente, apareceu uma fresta na porta acompanhada por uma voz de mulher, "o que o senhor deseja?". Fiquei toda desarmada, pois esperava que o safado atendesse, "é a casa do Carlos?", perguntei. A porta foi aberta um pouco mais, deixando ver a dona da voz, mulher pequena, com aspecto frágil, usando uns óculos escuros que me chamaram a atenção. Ela me informou tratar-se de seu marido, que não estava em casa e não sabia se voltava ainda hoje. Azar, pensei, e fui logo falando do cheque e que, quanto tentei descontá-lo, não tinha fundos. Expliquei que havia visto o endereço impresso e resolvi vir cobrar. Com uma cara de quem não estava entendendo nada, ela disse que o marido tinha passado o dia anterior todo em casa, só saindo à noite. Decidi mostrar para a mulher com quem ela estava casada abri o jogo de vez. Contei que tinha feito um programa com o esposo dela na noite anterior e, em pagamento, havia recebido o cheque. Ao ver a assinatura do marido no cheque, mostrando ser verdade tudo que eu falara, ela me convidou a entrar para discutir o assunto. Mal a porta se fechou a mulher desatou a chorar.

Senti uma pena enorme da esposa do sem-vergonha da história que Mona me contava e, quando percebi, estava a ponto de chorar também. Imaginava uma relação tumultuada, cheia de brigas e discussões, mais ou menos como a de meus pais. Devolvi a cachaça que ainda estava comigo e, pela primeira vez, devido à maneira como ela segurou a garrafa, levando-a até a boca, enxerguei ao meu lado uma mulher. Ficou em silêncio com os olhos fechados, pensei que estivesse dormindo ou houvesse desmaiado. Quando ia sacudi-la recomeçou a falar, bem baixinho, com uma voz mansa, boa de ouvir:

- Fiquei sem saber o que fazer, olhava para todos os lados, evitando encarar a figura que parecia se desmanchar em lágrimas na minha frente. Tomei a iniciativa dizendo que não tinha diretamente nada contra ela mas precisava do dinheiro e seu marido tinha sido um perfeito canalha, pois havia chegado a me bater. Parece que surtiu efeito, aos poucos a mulher foi se acalmando. Retirou os óculos ainda com a cabeça baixa e, lentamente, levantou o rosto deixando à mostra o olho completamente roxo que contrastava com a pele alva. Com a voz trêmula, segredou, "Não foi só você que apanhou ontem." Aquelas palavras atingiram algum sentimento que eu desconhecia, um ponto em comum, como uma ponte, ligando-me àquela mulher. Ambos éramos vítimas de uma mesma violência, praticada pelas mesmas mãos. Um sentimento de cumplicidade começou a crescer, olhávamos para o outro como quem mira um espelho e assim, encontrávamos a nós mesmos. O abraço veio ao natural para aliviar a dor que nos invadiu. Nenhuma palavra foi dita, apenas, cada vez mais forte, nossos corpos se aconchegavam. O silêncio só foi interrompido pela pergunta da mulher, "quanto você cobra para fazer, você sabe, um programa?" Confesso que fiquei surpresa, não esperava aquela indagação mas, assim mesmo, respondi que dependia do que o freguês quisesse. "Quanto você cobraria para fazer comigo, agora, lá no quarto, na cama onde aquele maldito se deita?" Não poderia haver vingança mais perfeita, pensei, e fiquei excitado na hora. Disse que faria de graça. "Não, eu quero pagar, quero gozar gastando o dinheiro dele." Cinqüenta reais, sugeri, é o preço para um programa completo. "Aceito!" E, enquanto me levava para o quarto, a vi sorrir pela primeira vez.

Eu ouvia a narrativa em total silêncio, Mona fazia pequenas pausas para beber a cachaça que pareciam os comerciais em um filme de tv. Sem largar minha mão reiniciou sua fala.

- Chegando lá, foi tirando a roupa em movimentos nervosos e deitou-se nua na cama, as pernas abertas, esperando. "Então era assim que aquela mulher transava", pensei, a atitude dela era completamente automática, sem nenhum romantismo. Fazia tempo que eu não olhava para o sexo de uma mulher principalmente sob um ponto de vista masculino. Fiquei um tempo observando, não sabia ao certo por onde começar. Sentei ao seu lado e passei a acariciá-la, sem tocar nos seus seios ou entre suas coxas, apenas deslizava as mãos naquele corpo que, ao contato, se arrepiava e tremia. Comecei a beijar seu olho roxo, como se assim pudesse curá-lo. Ao alcançar sua boca, o beijo foi prolongado, as línguas a se enrolarem, as mãos já não tinham limite. Nessa altura, eu já estava pronto, espada desembainhada, nossos corpos se encontraram, os movimentos se encaixavam, combinavam, como se fôssemos velhos amantes. Dorminhoco, como um urso em hibernação, o gozo despertou lentamente, se agigantou e nos engoliu.

Acompanhava cada palavra da história contada por Mona, esperando ansioso nas pausas, participando junto nas ações. O calor que até então estava localizado em minha espinha ardia agora no interior de minhas calças. Encolhi minhas pernas e larguei sua mão na tentativa de disfarçar, mas bastou um olhar para ela entender o que estava se passando. Com uma pequena careta devido ao movimento, pôs sua mão no meio de minhas pernas e começou a mexer os dedos lentamente. Estávamos na rua, podia passar qualquer um, talvez uma pessoa conhecida, tirei sua mão assustado e coloquei-a junto com a outra sobre o ferimento. Ao terminar o movimento estava arrependido. Uma sensação ruim que foi passando conforme ia ouvindo a narração de Mona.

- Saí de dentro dela e começamos a nos vestir. Foi então que ela me perguntou qual era o meu nome verdadeiro. "Moacir", eu disse, "mas nas ruas me chamam de Mona". Ela começou a rir, um riso gostoso, daqueles que a gente não consegue resistir e acaba rindo junto. Quando as gargalhadas foram passando, quis entender qual tinha sido o motivo daquele ataque. "É que meu nome é Lisiane, mas desde pequena me chamam de Lisa." Peças de um quebra-cabeça que se encaixam com perfeição, obra de arte, o certo é que éramos muito mais unidos do que podíamos imaginar. Terminamos de colocar as roupas e, ainda rindo, voltamos abraçados para a sala. Ela me pagou, por mais que eu argumentasse contra e eu parti com um gosto saboroso de vingança por todo o corpo. Então hoje, eu tinha acabado de chegar de um programa e estava me arrumando, quando veio um vulto por trás gritando o tempo todo e com uma enorme faca na mão. Consegui me esquivar na primeira investida e percebi tratar-se do freguês do cheque, quando tentou novamente pegou de raspão, na terceira vez foi em cheio. Caí no chão achando que ia morrer. Minha sorte foi que um carro entrou na rua e ele se assustou, saiu correndo decerto com medo de ser visto. Tentei me levantar e procurar ajuda, mas doía muito, com esforço cheguei até aqui, onde tu me encontrou.

Fiquei olhando para Mona estirada na calçada, segurando uma garrafa de cachaça quase vazia e a achei linda. Deitei-me ao seu lado e ficamos em silêncio, abraçados. O barulho de uma moto em disparada me fez acordar, o sol ainda não tinha surgido, mas já coloria o horizonte com tons lilases. Levantei-me sem me importar em ser visto, ou com o que minha mãe diria e, só então, reparei que estava todo sujo de sangue.

Recolhi minha jaqueta do chão e tentei em vão colocá-la. Ela não me servia mais, parecia que eu havia crescido e, como as cobras, necessitava deixar minha antiga pele para trás. Abaixei-me e utilizei-a para cobrir o corpo de Mona, fiquei acariciando seus cabelos antes de beijar sua boca fria. Subi para o meu apartamento estranhando meu novo tamanho.

Romir Rodrigues