CRÔNICAS DA MÃE (V)

por Alice

 

Eles eram bem pequenos, tanto que ela ainda ia no banco de trás do carro em uma cadeirinha de nenê. Era uma gracinha ela na cadeira, debruçada naquele "anel" acolchoado que passava na frente dela. Ele já ia no banco, com o cinto do carro, mas sentava em uma almofada pra ver melhor a rua. Estávamos a caminho do supermercado quando ela começou a reclamar:

- "Mãe, a minha cadeira tá me incomodando."

- "Tá, filha, a gente tá quase chegando, tu já vais sair daí."

- "Não, mãe. É por dentro."

- "Tá, filha. Já vai." - manobrei e entrei no estacionamento. Tirei ela da cadeira -"Passou?"

- "Não, mãe, é a cadeira que tá no meu nariz."

Ele esclareceu pra mim:

- "Ela ficou colocando uns pedacinhos da cadeira dela dentro do nariz, mãe".

Aí eu olhei a cadeirinha e vi que o anel de proteção, na parte de baixo, tinha um furo no tecido de revestimento, do tamanho da ponta de um dedinho. E no banco do carro tinha um monte de pedacinhos de espuma, tirados pelo buraquinho. O que não estava no banco, estava no nariz dela, concluí.

- "Mãe, tá ruim de respirar".

Olhei o narizinho dela, um montinho minúsculo com dois furinhos, e nem tentei fazer nada. Meti os dois no carro de novo e dirigi até o HPS, foi a única coisa que me ocorreu. Fiz os papéis da entrada dela, expliquei o que tinha acontecido e ficamos aguardando o médico otorrino, que estava ocupado. A espera durou uns vinte minutos, e foi tão impressionante que nós até esquecemos do nariz com espuma. Vimos gente entrando com fraturas expostas, gente passando mal e gritando, e o tempo todo tinha no corredor uma maca com um homem deitado, quieto, e do peito vermelho dele saía o cabo de uma faca. Meu filho de vez em quando perguntava:

- "Mãe, ele tá morto?"

- "Não sei, filho, fala baixo que ele pode ouvir."

Não ficamos sabendo se o homem estava vivo, chamaram o nome dela e nós entramos. O médico foi muito atencioso, e se controlou pra não rir quando ela disse porque estava lá: - "Eu coloquei a minha cadeirinha no nariz, tio." Eu fiquei com ela no colo e ele examinou com luz: - "Está aqui, sim, já vamos tirar". Ela nem piscou quando uma pinça imensa foi enfiada na narina dela e saiu, segundos depois, com um pedaço de espuma do tamanho de uma azeitona pequena. O médico mostrou pra ela e fez um discurso sobre o que pode acontecer com meninas que enfiam coisas no nariz, e ela ficou bem quietinha e assustada. Saímos de lá e fomos fazer as compras, pra relaxar.

Essa foi a primeira vez. Depois da espuma, ela colocou grãos de milho, bolinhas de papel, pecinhas de lego. E variava também, às vezes no nariz, às vezes no ouvido. Ela me tirava de onde eu estivesse com um telefonema, ligavam pra mim de casa, da escolinha, e lá ia eu com ela. Ficamos fregueses do HPS, o atendente da recepção já me perguntava: "- Continua no mesmo endereço?" Ela chegava feliz da vida, achando tudo uma aventura, ficando comportada enquanto o médico examinava e retirava a porcaria da vez, ouvindo bem atenta o sermão do coitado. Meu filho já achava tudo normal, meio tedioso, até.

"- Mãe, tem uma coisa no meu ouvido que eu coloquei lá."

"- O que foi desta vez, monstrinha?

"- Acho que uma coisinha de cima da tampa do requeijão. Não consigo tirar."

No pronto socorro, não acharam nada. Num ouvido, no outro, não seria no nariz, nenê?

"- Ué, eu acho que caiu, então... " - e o sorriso dela me deu certeza que desta vez ela havia se superado, não precisava mais colocar nada em lugar nenhum, era só dizer que havia colocado e o resultado era o mesmo. E ela adorava o movimento, a atenção, o passeio, e principalmente eu girando no barbantinho amarrado no dedinho dela. Na volta pra casa, nós duas em silêncio, eu louca pra apertar ela com força e encher de beijo e louca também pra jogar ela pela janela do carro.

"- Mãe, tem uma coisa no meu nariz." Era de noite, domingo, e chovia.

"- Nem quero saber o que é." - eu esqueci todas as orientações da minha terapeuta, segurei o medo que dessa vez fosse sério e fiquei fria.

"- É uma sementinha do suco, mãe."

"- Que bom, vai nascer um pé de laranja daqui a um tempo."

"- Mãe, tá me incomodando. Eu quero tirar ela."

"- A gente não vai mais tirar nada do teu nariz nem do teu ouvido. Eu e o doutor do pronto socorro resolvemos que é melhor deixar, já que tu gostas tanto de colocar coisas aí. Nós desistimos, pode colocar o que tu quiser."

"- Mas me incomoda, eu não quero mais!" - ela estava quase chorando, e eu quase correndo com ela no colo, como sempre. Virei de costas pra não ver o susto nos olhinhos dela.

"- Com o tempo acostuma. Lá na cidade da vó tem um homem que cresceu com um pé de limão no ouvido."

"- Eu não quero, mãe, me leva no médico!" - agora ela chorava, e eu me senti a pior de todas as mães. Foi uma batalha dura, ela chorando e pedindo pra ir, eu fingindo que nem me importava e ele neutro, percebendo tudo sem alcançar a compreensão total, me ajudando em silêncio. Ela dormiu de cansaço, ainda choramingando no meu colo. Eu passei a noite acordada, cuidando dela, vendo se não tinha febre, se estava respirando direito, e se a tal da semente existisse mesmo?

No outro dia, tudo estava bem. Ela acordou feliz e de bom humor, ele também, eu saí pra trabalhar com olheiras enormes e sentimento de culpa. Liguei o dia todo pra casa, depois pra escola, perguntando se ela estava bem, se o nariz não estava coçando, nem inchado, nem sei lá o que... Não aconteceu nada naquele dia, nem nos próximos. Ela nunca mais colocou bobagens no nariz, nem no ouvido, nem em nenhum outro lugar. A semente está até hoje no narizinho dela, ou não. Quando ela fica resfriada e eu coloco Sorine, a gente brinca dizendo que é pra regar a sementinha, que já está lá dentro há anos e até agora não brotou.