Crônicas da Mãe (IV)

por Alice

 

Foi agora, no terceiro final de semana de janeiro.

Eu trabalhando na cidade, eles dois passando o mês na casa da vó, no interior. Cidade pequena, vizinhos, amigos, a vida toda em meia dúzia de quarteirões. Ele e ela, no máximo da independência nos seus 7 e 8 anos, indo e vindo sozinhos do clube, passando as tardes na piscina, indo na praça de noite tomar sorvete. Eu em um mar de tranqüilidade, sabendo que toda a cidade sabe que eles são meus, e cuida deles pra mim.

Quando dá, pego o ônibus na sexta e passo o fim de semana com eles. Foi quando aconteceu. Todos no clube, eu tomando sol e assuntando com as minhas amigas do tempo do colégio, eles brincando na piscina com os filhos das minhas amigas. (Ver os meus filhos brincando com os filhos dos meus amigos me dá a sensação de ter feito o meu dever de casa.)

Então vieram os três correndo, ele, ela e um amiguinho. Ela e o amiguinho gritando, com os olhos arregalados, e ele com a metade do rosto vermelha, a mão na testa, meio apavorado: "Mãe, o que foi que aconteceu comigo, tá doendo muito..." O vermelho corria pela mão dele, pingava no calção molhado, deixava um caminho colorido atrás dele. Foi aí que eu congelei, e fiquei de lado apavorada, enquanto eu também pegava ele no colo e tentava calmamente ver de onde vinha aquele rio. "Não aconteceu nada, querido, é só um cortezinho e a gente já vai correndo te levar pra consertar. Fica frio. " Um saco plástico com gelo apareceu na minha mão, uma toalha úmida e eu achei o corte, não muito largo, mas profundo, com as bordas longe, longe, longe uma da outra. "Deixa eu colocar o gelo, filho, ajuda a parar o sangue e a dor. Isso, já vai melhorar" "Dói, mãe, não pára, dói muito" E a gente no carro, voando pro Pronto Socorro ( ai meu Deus, será que funciona? será que tem médico? ). Ela veio junto, bem quieta, a testa franzida, só falou quando eu mandei ela ficar lá com as tias me esperando: "Bem capaz, eu vou com o meu irmão." E veio, muda.

"Como foi que aconteceu, filho?"

"Não sei, eu pulei na água e a minha cabeça doeu."

"Ele bateu na borda da piscina, mãe."

A toalha ia ficando vermelha, ele chorava baixinho, tentando controlar a dor e o medo: "Onde a gente vai?"

"No Pronto Socorro. Lá tem gente pra cuidar de ti direitinho."( por favor, Deus, que tenha mesmo).

"Vão me dar anestesia? Eu quero anestesia. Não, anestesia é com agulha, eu não quero anestesia, mãe!"

E ela, bem baixinho, "Mãe, dá um beijo nele pra passar, dá um beijo nele pra passar."

Descemos do carro voando, tem gente, tem médico, é tudo tranqüilo, isso não foi nada, Super Homem, ele diz. A atendente tira o gelo, a toalha, o médico coloca as luvas, eu estou na cabeceira da maca, as duas mãos agarrando as mãos dele com força. "Agora, filho, a moça vai limpar o cortezinho." Ele trinca os dentes e aguenta firme, sem se mexer. Quando foi que o meu nenê virou este hominho tão corajoso? "Agora eles vão passar uma pomadinha pra não doer, fecha os olhos," e o médico faz a anestesia suave como uma borboleta, e conversa com ele explicando tudo, mostrando a agulhinha da sutura, contando os pontos, agora já não dói e ele ralaxa. "Vou ficar que nem o Frankstein, com costura na testa." Eu também amoleço e sinto uma gratidão enorme por aquela gente toda que atende o meu filho com tanto cuidado: "Pronto, Superman, vai ficar com uma cicatriz pequeninha, homem é assim mesmo, são as marcas da batalhas."

Agora já posso parar de observar essa que tomou o meu lugar fazendo as coisas necessárias e voltar pra dentro de mim. Estou chorando tranqüila quando nós saímos para a recepção, ele está com um enorme curativo na testa. Ela pula e corre pra ele: "Já ficou bom, mano? O que eles fizeram? Não dói mais, mano?" E ele, feliz com a sua força masculina rescém testada: "Foi só um cortezinho, deram uns pontos e pronto. Nem doeu." Ela abre um sorriso de alívio e fica de mãos dadas com ele até em casa. Ele não volta no meu colo, mas me concede: "Que sorte que eu me machuquei quando tu estava aqui comigo, né mãe?" Eu concordo com ele, tem coisas que só acontecem quando as mães estão cuidando.

Eles estão jogando cartas na sala ( não, filho, não pode jogar futebol ainda, não insiste. NÃO, filho) e ela briga com ele: "Ai, mano, como tu é burro! Acho que o teu cérebro vazou todo pelo buraco da testa!"