Meia-perna, virilha e buço
por Miguel da Costa Franco
A ante-sala do hotel estava cheia de excursionistas da terceira idade, fumaça de cigarro e "boys" apressados, complicando-se com as malas e sacolas e frasqueiras da clientela exausta e reivindicante. Uma roda grande de velhotes cercava as garrafas térmicas de chá e café pingado com graspa, que ajudavam o único e combalido aparelho de ar condicionado da sala imensa a combater o frio e a umidade de julho.
Do bar próximo à portaria, alguns marmanjos, de olhos indisfarçadamente pousados nas carnes bem mais tenras, firmes e moldadas da instrutora, admiravam as proezas aquáticas de uma sexagenária turma de hidroginástica a exercitar-se na piscina térmica.
Ver a moça ao telefone, a meia distância entre o bar e a vidraça que o separava da piscina, era mais reconfortante para mim. Embora não fosse bela, tinha a pele muito branca e um leve rubor nas faces, que transmitia ânimo e pulsação. As roupas largas e deselegantes escondiam-lhe o formato preciso do corpo, garantindo-lhe, de minha parte, uma dedicação maior de olhares, curiosidade confessa e imorredoura pela contramão da espécie.
Enquanto me aproximava, vi-a atrapalhar-se com as fichas telefônicas - mal acomodadas numa niqueleira de metal trançado, pequena e super-povoada - e iniciar um segundo telefonema que acabaria por alterar o curso da minha vida. Foi ele que me fez correr atrás dela por toda a noite e, passados tantos anos, desejá-la ainda ardentemente, amá-la, sofrer.
- Renato?
- ...........
- Passo aí às cinco e meia. - falou decidida. - Meia-perna, virilha e buço - completou, já com a voz mais comedida, quase aos sussurros. E desligou.
Tinha os olhos tristes e pensativos ao pousar o telefone.
Foi assim que os conheci.
E desde então eu sei que nada substitui um bom par de olhos expressivos para o sucesso das relações humanas. Cruzá-los com os meus, num átimo, foi tudo que me concedeu, então. E escapuliu apressada para as escadarias que a levariam ao segundo piso, sem perceber que cravara em mim uma felpa incandescente, uma seta abrasiva e envenenada, uma angústia terrível de sua ausência antes tão desimportante.
Tomei cinco doses de uísque: uma para cada perna, duas em homenagem às virilhas e a quinta pelo buço, que só mais tarde vim a saber ao certo do que se tratava.
Voltei a encontrá-la apenas no dia seguinte, convenientemente acomodada junto a conhecidos meus, no restaurante do hotel, uma cadeira vaga a sua frente, um pouco fora da roda. Dirigi-me lentamente para aquela cadeira, como se todos no lugar soubessem que ela era minha, olhando-a nos olhos, sempre bem nos olhos que ela os tinha belos e castanhos, silabando, salivando, me embalando num cantochão surdo e vigoroso: "meia-perna, virilha e buço, meia-perna, virilha e buço, meia-perna, virilha e buço". Mal resmunguei um "ôi" para os amigos e me dediquei inteiramente à ela, a sua boca carnuda e salivosa, seu nariz delgado e caprichoso, seus meus olhos, dela, meus, seus, meus olhos. Santos olhos.
Tinha o rosto menos sombrio e sua pele era não apenas branca como lisa, suave, frágil.
Nem bem sentara, minha mão, autônoma, ergueu-se lentamente, o guardanapo desprezado quase mergulhou no vinho, e decidida e trêmula acariciou seu rosto ternamente, sua pele fina e transparente se ruborizando aos poucos, um calor sanguíneo me alcançando os dedos.
- Estamos vendo alguma coisa acontecer - cantarolou alguém. E até tinha razão. Mas não naquele momento. Surpresa e juízos morais nunca combinam na primeira tacada. Passado o gozo, sobreveio o susto. E ela afastou minha mão, doce mas firmemente, uma ironia nervosa na voz - e por nervosa, traidora - e perguntou ao grupo, não a mim, se acompanhávamos em outra garrafa de vinho. A mensagem imediata de que ela queria permanecer ali me bastou. E respondi sim, sim, sim, junto com os outros. E bebemos várias e conversamos e nos olhamos e soubemos ficar em silêncio às vezes.
E o povo foi sumindo, os amigos se retirando, garçons amontoando mesas, cozinheiras bocejantes e entrouxadas saindo porta afora, dando adeus, e restamos apenas nós e um maldito bebum a falar de não-sei-quê.
Ela nos deu boa-noite e se mandou.
Não foi difícil conseguir o número do seu quarto na portaria do hotel. Apesar de me fazer insistir por meia hora ou mais ao telefone, não foi difícil convencê-la a me deixar subir, juro que não foi. O problema era apenas moral: havia um marido distante, estúpido e trolha a ser traído e embora essa decisão ela já a houvesse tomado há mais de século, o próprio tempo ajudara a corroer-lhe o ânimo. Mas a convenci. E corri pelas escadas, afoito e rapazola, o coração aos pulos.
Nem foi preciso bater, minha mão erguida tocou apenas o vazio da porta que se entreabria lentamente. E depois seu rosto, numa carícia prolongada, seu robe improvisado também se entreabrindo, sua voz enrouquecida me dizendo entra, entra, entra, e então toquei seu corpo mansamente e beijei seus ombros e sua boca carnuda e me despindo tropecei na cama, interrompendo o transe. Terminamos de nos despir frente a frente, entre sorrisos, despreocupados de atributos corporais mal resolvidos. Meia-perna, perna inteira, virilhas, "buça", buço, barriga, seios, bochechas, boca, orelhas, braços, coxas, ... vasculhei-a toda, ávido e febril. E ela, a mim. Suas coxas e seu ventre, ao contrário, do restante de seu corpo depilado, estavam plenos de uma penugem macia e dourada, os pentelhos louros cheirando a xampu.
Conversamos muito, reeditamos passo a passo nossa existência conjunta.
Apaixonou-se decisivamente por mim quando lhe perguntei se podia dormir ali. Eu me apaixonara antes.
Com a luz apagada, falamos ainda uma última vez:
- Por que meia-perna, virilha e buço? - quis saber.
- Porque é inverno - respondeu, desinteressada, a voz perdendo-se num longo bocejo. - Prá que depilar mais?
Me deu um beijo e então dormiu, seu corpo relaxado e inerte, a mão brincando com meu sexo como massinha de modelar.