Todo o tempo do mundo
por Miguel da Costa Franco
A primeira vez que ouvi "Ventura Highway" acabei roubando o disco. Foi numa festa lá na Vila Jardim. Eu aceitei que precisava daquele disco e meti a mão. Desci a pé a Protásio highway, que naquela época eu não tinha prata nem para o buzum. Mas vinha feliz, feliz... O disco apertado dentro de minha jaqueta de camurça, o vento da noite batendo no meu rosto, quase que fumando sozinho o velho minister pendurado nos meus lábios ressecados de frio e pastosos de cuba libre.
"I shot the sheriff" e chamei os companheiros brigadianos de "porcos filhos duma puta" lá na esquina da Dr. Valle com a Mostardeiro. Éramos seis, voltávamos do aniversário do Karam, o saxofonista, e acabaram três no camburão.
"Everybodys talkin" sugere um namorico que ficou só no sofá, alguém que ainda hoje comeria de bom grado, ainda que fosse para, enfim, dar descanso eterno a algumas lembranças angustiadas de adolescente rejeitado.
Fugir para Torres, convite inesperado de uma deusa, correr com ela na cacunda pela Praia Grande, sonhando com o úmido roçar de seu sexo no meu pescoço, "Summer breeze", um vento morno a brincar conosco, dormir agarradinho.
Caminhar na chuva, fumar, jogar baralho. Deixar os primeiros frios de abril do lado de fora da janela do mocó em que se escondia a minha turma da Venâncio Aires ("Sometimes it snows in april"). Olhar o vai-e-vem dos bondes, tomar sorvete na esquina da Lima e Silva, vendo o movimento das putas para os lados da Casa Elsa. Ou fazendo troça com o Margarida, que sempre passava rebolando seus dois metros de esquálida bichice.
Livre para ver três ou quatro filmes por semana, afinal "thats why God make the movies" também.
Ouvir bons "blues" no casarão da Casimiro de Abreu, com grandes peças separadas por finas paredes de adobe, testemunhas de tantos momentos doces e que geraram amizades tão indestrutíveis...
Ou circular por essas praias de "cool clear water" que aprenderam a decorar nossos movimentos de verão: Rosa, Floripa, Bombinhas, 4 Ilhas, Garopaba dos anos 70 (tenho um poster lindo dela bem aqui sobre minha cabeça). Mergulhar na praia da Sepultura quando ainda não existiam tantas embalagens plásticas... Ou fazer o Brasil até o nordeste numa flamante - e, então, anônima - brasília amarela.
Não me importa a cronologia, não me importa a relação precisa entre as datas e os fatos, nem sequer a correlação entre lembrança e significado direto das canções. Qual a diferença entre o fato e a versão, se o que me sacode é o sentimento? O "Hi-fi", do Nei Lisboa, me fez despertar tantas lembranças boas!
Desenrolo outra vez a velha foto da chapa 1, candidata à eleição para o grêmio do colégio, em 74 ou 75 - Nei, Téo, Zeca e Miguel - todos confiantes e sorrindo para o futuro.
A verdade - e esse é o gancho para esse "reminding" - é que, ao contrário do que lamentava o Cazuza, os meus amigos estão no poder. E todos eles, longe ou perto, bem ou mal, bêbados ou sóbrios, loucos ou caretas, barrigudos ou carecas, vivos ou mortos (sim, eles também!) curtiram algumas dessas mesmas coisas.
Isso me fez embaciar os óculos no dia da posse do Olívio, sentado em frente à Catedral.
Sério!
Eu estava com amigos que ficaram longe de Porto Alegre por muito tempo, não acompanharam nossa trajetória política nestes últimos longos anos, eles embevecidos com a multidão vermelha e sorridente e pacífica, velhos e moços, crianças e soldados, sim .. até os soldados pareciam de folga. (A velha Maria da Conceição Tavares passou com os olhos inchados de cidadania). E eu,...bem, eu nem dava bola para os refrões batidos provocados pelo apresentador. O CD do Nei não me saía da cabeça.
A bandeira de Cuba desfraldada no Palácio Piratini me lembrava menos de barbudas revoluções do que das cubas libres da adolescência.
Voltei para casa pela "Independência highway" a quarenta por hora. Era como se alguma coisa me houvesse devolvido o rumo antes perdido, como se eu estivesse irremediavelmente remoçado, inteiro, em paz.
Para que a pressa?
Era como se, outra vez, nós tivéssemos todo o tempo do mundo...