Cipó, o homem gol.

 

Daniel Peccini Corrêa

 

Se não me engano eu tinha uns 12 anos. Não era a primeira vez que eu viajava com a torcida organizada do Caxias para assistir um jogo fora do nosso estádio. SER Caxias X Aimoré. O Caxias precisava empatar, o Aimoré estava eliminado. Uma questão de paixão clubística na época, pelo menos mais intensa que hoje. Foi uma viagem inesquecível por vários motivos. Talvez o principal seja que foi a primeira vez que eu bebi bebida alcoólica. E comecei bem: cachaça.

Porque fiz aquilo não me recordo bem. Talvez curiosidade, timidez, ou qualquer motivo que não me vem a mente. Mas enfim, foi o que aconteceu. Lembro-me que no primeiro gole não consegui engolir direito, parecia um ácido. Até aquela época eu bebia apenas água sem gás e sucos, devido ao fato de eu não gostar de refrigerante. Então o choque foi forte. Mas no segundo gole em diante não dei muita importância, visitei os caminhos mais profundos do copo em questão de poucos minutos.

Chegamos no estádio. Alguém falou:

- O Daniel não pára em pé

Calúnia. Eu estava bem. Não enxergava lá grandes coisas mas eu estava naquela fase em que conseguimos criar longos raciocínios na nossa mente mas não conseguimos transformá-los em palavras.

Começa o jogo, a torcida animada. Amizades novas feitas ali no ônibus, comentando que o time adversário está morto e amizades antigas de outras viagens, todas juntas ali, torcendo para o mesmo clube. Eu apenas escutava um eco, os sons também estavam de difícil percepção.

Alguém comenta comigo que o Joel Marcos está pipocando. Eu balanço a cabeça e digo que sim. Sim, quero mais um gole.

Gritaria, deve ser gol.

Sim, quero mais um copo.

Foguetes, pênalti. Gol.

Quarenta e quatro minutos do segundo tempo. O Caxias perdendo e a torcida xingando. Jogada de Brandão pela direita, ele cruza, a bola passa pelo goleiro e cai no pé de Cipó.

Se eu fosse Cipó, iria entrar em depressão tamanha era a solidão daquele homem naquele momento. Era Cipó, alguns ralos talos de grama e a goleira. A cena foi marcante. Tão marcante que a cachaça que insistia em permanecer em meu cérebro evaporou e se dissipou em apenas 2 segundos. De repente eu estava sóbrio. Mas Cipó não estava. Como num passe de mágica, todo álcool que habitava meu corpo invadiu o corpo de Cipó e ele, completamente alcoolizado, encostou seu delicado pé na bola branquinha e mandou ela para os ares.

Era uma cena que não queria acabar. A bola lá, viajando em direção ao infinito e eu tendendo ao chão. Alguém deu "pause" no tempo. Deve ter sido Deus. Aqueles instantes não queriam acabar. Olhei para os lados e a torcida era um mar de expressões diferentes. Tudo isso em câmera lenta. Parecia uma cena de guerra. Alguns colocavam a mão na cabeça, outros olhavam para um ponto no horizonte, além de tantos outros boquiabertos. Teve gente que se ajoelhou e enfiou a cabeça na camisa para escorrer as lágrimas.

Eu olhei para o céu e vi um passarinho parando para descansar num dos refletores.

E no gramado aquela figura antológica que entrou para a história da SER Caxias: Cipó. Aquele do jogo contra o Aimoré.

Na volta desta jornada éramos o oposto do que se via na ida. Eu estava sentado ao lado de um senhor que aparentava uns 60 anos e usava uma camiseta com o autógrafo do Luís Felipe. Eu olhava para a janela e cada lugar que eu avistava me lembrava daquele lance. Cada curva da estrada me lembrava a curva que a bola fez circundando a goleira. Cada parada de ônibus me lembrava a goleira que Cipó teve o prazer de estar sozinho ao seu lado. E cada gota de chuva que caía era para fazer companhia as gotas de lágrima que saíam dos meus olhos e dos meus novos e velhos amigos. Muitos deles, amigos de uma vez só.

O senhor que estava ao meu lado me oferece um pedaço de chocolate. Eu aceito. Com as suas mãos já calejadas de tanto carregar radinho de pilha ele quebra a barra de chocolate assim como Cipó fez com a bola. Ele me disse:

- Tudo bem guri, vai acostumando.

Me vi com 60 anos e dizendo o mesmo para um guri que assim como eu dá valor as coisas pequenas da vida. Paixão é isso aí, um caso de amor.

 

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