Zé Roberto, Umberto e Gessinger.

 

"Não-ficção? Isso existe?" José Roberto Torero

 

Existe, Zé Roberto, está até no Aurélio. Verbete: não-ficção 1. Designação genérica de obras literárias tais como, entre outras, ensaios, crônicas, crítica, biografias, memórias, narrativas históricas, divulgação científica, em contraposição a romances, novelas, poesia, contos, fábulas, etc. Plural: não-ficções. Pois o Não 62 é feito só de não-ficções. Que me desculpem os contistas, roteiristas e poetas pela radicalização. Minha justificativa exige algumas definições e nesta até o Aurélio escorrega: "designação genérica... em contraposição a...".

Toda narrativa precisa de um ponto de vista. Todo ponto de vista é parcial. Logo, todo mundo viu que, mesmo estando o Grêmio sem os seus mais importantes titulares (Scheid, Palhinha e Agnaldo) o Inter precisou de um gol em absoluto impedimento para ganhar o Gre-Nal e, mesmo assim, foi desclassificado da Copa Sul, bem feito.

Eco: "Todo o mundo ficcional se apóia parasiticamente no mundo real, que toma por seu pano de fundo. (...) Na verdade, espera-se que os autores não só tomem o mundo real por pano de fundo para sua história, como ainda intervenham constantemente para informar aos leitores os vários aspectos do mundo real que talvez desconheçam." Certo, Umberto. Então o que distingue a ficção da não-ficção? Ela também não se apóia parasiticamente no mundo real?

Acho que a diferença é de pretensão. A não-ficção afirma dizer a verdade sobre o mundo real, sobre fatos que continuariam existindo fora da narrativa. Fatos? ("A morte é o fato primeiro e mais antigo. Quase me atreveria a dizer, o único fato". Elias Canneti.) A não-ficção pode ser um ponto de vista cercado de dúvidas por todos os lados, mas as bombas continuarão caindo sobre Kosovo, falemos ou não sobre isso. E Radamés Gnatalli realmente foi para o Rio de Janeiro e o Humberto Gessinger realmente gravou uma música chamada "Terra de Gigantes", apesar de você jurar que não lembra. A ficção, ao contrário, afirma dizer a verdade sobre um mundo criado pela própria narrativa. Na ficção, não há dúvidas. Ou alguma vez você se perguntou se o ET realmente conseguiu voltar para casa?

Na ficção, como nos sonhos (ai!) tudo pode acontecer. Dois elefantes azuis podem cruzar a Assis Brasil, montados pela Tiazinha e pelo vocalista do Kiss (uma espécie de Tiazinha velha de coque), o Banco Marka pode devolver nosso dinheiro e pedir desculpas e o Buzatto pode torcer de verdade para que o Olívio e a Ford se entendam e você não se surpreenderia. Afinal, isto é apenas ficção. Na não-ficção, ao contrário, um gol perdido pelo Cipó, atacante da SER Caxias, pode atingir uma dramaticidade shakespeariana, mesmo que seja tudo mentira. O que importa é que o narrador afirma que é verdade e assume um ponto de vista. E isto é raro.

O Não é o único veículo de não-ficção sem publicidade que eu conheço. Já o mundo da ficção é um território vasto e inexplorado. Você pode escolher entre Proust e Dostoiévski, entre Auster e Carver, entre o Érico e o Rosa. Na não-ficção, suas opções são o Correio ou a Zero Hora. A Gaúcha ou a Guaíba. Ficção, para valer a pena, tem que ser muito interessante, lida com muita atenção. Elas ficam muito bem nos livros e telas de cinema. Não-ficção vale até hora certa e previsão de tempo. Acredito que a internet é um ótimo lugar para mentir e péssimo para fazer ficção. Mas é só uma opinião, o próximo editor do Não que me desminta.

Uma novidade nesta edição: alguns textos têm, no seu final, ligações para outros sítios na internet, sobre assuntos nele referidos. Estão no canto direito, sob a frase pouquíssimo original "para saber mais sobre...". (Achei que este era, como diz o Veríssimo, "um daqueles casos onde o óbvio deve ser deixado em paz".) São sítios fora do Não. Se você ficar curioso, vá lá, dê uma olhadinha, e depois volte para o Não!

Jorge Furtado