Dogma 99: A Solução para o cinema brasileiro?
(Um manifesto de Tomás Creus)
 
 
Assisti, como quase todo mundo, a "Festa de Família" do dinamarquês Thomas Vinterberg. Como quase todo mundo, gostei do filme. Mais do que isso: embora no começo estivesse meio apreensivo quanto ao tal "Dogma-95" - que mais do que tudo me parecia um golpe publicitário ou uma limitação desnecessária à liberdade de criação cinematográfica - saí do cinema convencido de que estava aí uma boa solução para ser utilizada pela tão propalada "nova geração" do cinema nacional: filmes baratíssimos, diretos e eficientes.

Mas, como infelizmente nem todas as regras do Dogma-95 se adequariam à nossa triste realidade dos trópicos, decidi lançar o Dogma-99, com a mesma idéia de criar um cinema que não caísse nos clichês visuais ou na estética da publicidade (cenários luxuosos mas com pouco a ver com os personagens; atuações estereotipadas e cenas cuja previsibilidade é acentuada pela música, etc., etc., etc.), mas também sem ser tão estrito quanto os dinamarqueses.

Alguns argumentarão que as regras são meio arbitrárias, e são mesmo. Mas, como bem disse o poeta Mallarmé, "Um  lance de dados não acabará com o caos." O que, por sinal, não tem nada a ver com o que eu vinha falando. De qualquer modo, a verdade é que também quero me promover, pois estarei lançando um curta em Gramado, "O Oitavo Selo" (ver NOTA lá em baixo), e o meu próximo filme, a ser lançado em algum ponto do próximo milênio, e cujo roteiro está em produção com o codinome provisório de "Rapsódia Húngara", seguirá religiosamente o dogma. A seguir, as regras.


DOGMA-99

1. Não deve haver personagens com sotaque nordestino na trama, a menos que sejam interpretados por atores realmente nordestinos. O sotaque não pode ser falseado. O mesmo vale para personagens cariocas, gaúchos e catarinenses, bem como estrangeiros: alemães, italianos, argentinos ou de qualquer outra origem - com exceção, talvez, dos húngaros, pois é difícil encontrar atores dessa nacionalidade, e ninguém sabe mesmo como é o seu sotaque.

2. Não devem ser usadas trilhas que não sejam justificadas pela imagem ou que apenas sublinhem a ação, exceto em casos excepcionais. Por exemplo, se a personagem aparece teclando o piano, mas a atriz não tem a menor idéia de como se toca o maldito instrumento, é admissível "dublá-la" com uma trilha composta. O mesmo se aplica a todos os instrumentos musicais, incluídos a cuíca e o berimbau. Trilhas óbvias (suspense quando o personagem segura uma faca; romântica quando um casal se beija) estão fora de questão. Por razões estéticas, a música sertaneja também está proibida.

3. Cenas de nudez ou sexo sem nenhuma função dramática são TERMINANTEMENTE PROIBIDAS.

4. Revoga-se a disposição anterior caso a atriz em questão seja a Luana Piovani ou a Carolina Ferraz, casos em que será permitida a nudez sem função dramática, e inclusive durante os créditos, em todos os ângulos possíveis e imagináveis.

5. O filme não deve, DE MANEIRA ALGUMA, falar sobre os 500 anos do "descobrimento do Brasil" (que aliás, como todos sabem, ocorreu antes de 1500, por Vasco da Gama, sendo que Cabral apenas tomou posse de uma terra já assegurada pelo Tratado de Tordesilhas).

6. Efeitos sonoros ou visuais excessivos devem ser evitados, para fugir à falsificação da realidade. E, depois, efeitos realmente bons são caros e o orçamento total do filme não deve ser superior a 300 mil dólares (longas) e 30 mil (curtas). O diretor, aliás, não deve ganhar cachê nem aceitar convites para um fim de semana na Ilha de "Caras" - o importante é a obra, não o diretor.

7. Para diretores com um histórico de desvio de verbas ou com um currículo incluindo mais de dois longas extremamente chatos ou mal dirigidos, as limitações do Dogma-99  se ampliam, como forma de desafiar sua criatividade. Assim, tais diretores devem não apenas fazer seu filme sem efeitos sonoros, como também sem qualquer tipo de som, e, aliás, também sem imagem. Fora isso estão livres para fazer o que bem entenderem.

8. Regras gerais de estrutura: o filme deve procurar manter as unidades dramáticas de tempo e ação (tudo acontecendo num período de tempo e local limitados), a não ser que se queira fazer exatamente o oposto. A narrativa pode ser linear ou não-linear, mas jamais as duas ao mesmo tempo. As locações devem ser limitadas ao máximo, e, se for só uma, melhor. Não deve haver crianças nem cachorros no elenco principal, a não ser que se trate de um dramático filme-denúncia sobre pedofilia e bestialismo. O filme não deve ter mais de uma hora e meia de duração.

9. Se o filme contar com um elenco que inclua Xuxa, Angélica, Adriane Galisteu, Rodrigo Santoro, Vítor Fasano, Márcio Garcia, Luciano Huck e a Tiazinha, a locação deverá OBRIGATORIAMENTE ser um pântano infestado por crocodilos, mantidos em jejum rigoroso até pouco antes do início das filmagens, e os atores serão proibidos de usar dublês.

10. A imagem pode ser captada em qualquer formato: vídeo digital, Super-8, 16mm, Pixelvision ou aquela câmera VHS do tio Atanásio. Entretanto, é preferível que a cópia final seja em 35mm e que dê para enxergar alguma coisa além de borrões. Ah, sim, antes que esqueça: o filme deve ser BOM.

Porto Alegre, 25 de maio de 1999.
 
 
Tomás E. Creus
tomas@cpovo.net
 


Conheça o filme O OITAVO SELO, de Tomás Creus, em sua página provisória http://www.ilea.ufrgs.br/~ivana/selo Saiba mais sobre o Dogma 95 dinamarquês em http://www.dogme95.dk/. Depois volte para o...