Procura-se um editor (*1)
por Paulo César Teixeira (Foguinho)
NÃO AO VIVO - 07/06/99 - 06:08
 
 
Elogiar o Não é o que eu tenho feito há mais de 20 anos. Mas não posso, em hipótese alguma, aceitar a sugestão de Jorge Furtado de editar o próximo Não. Primeiro, por uma incompetência primária e indesculpável com as coisas do computador. É pior do que não saber falar inglês. Segundo, porque não tenho talento. Nem tempo. (...) Mas aproveito a chance para sugerir um editor para o próximo Não: o Scotto! O cara está lá à beira da lagoa, naquela vida saudável, sem stress, coçando o saco, para dizer a verdade, e ainda manda carta metendo o pau no Não! Então, é o homem certo para editar o próximo Não.

Também tem o seguinte: tenho a nítida consciência de que o Não representa ou sintetiza uma comunidade informal pela qual eu nutro a mais profunda simpatia, mas de que não faço parte, a não ser na periferia, à margem, e cujo centro é a Casa de Cinema, ou as pessoas que fazem parte dela, ou trabalham com ela. O Não é muito bem feito por esse pessoal. O Não "que nunca foi escrito" não é o Não que EU vou editar a seguir, mesmo porque não ambiciono e não invejo a função de editor do Não.Tanto é verdade que nunca editei o jornal(*2), nem quando o papel do editor era apenas juntar as folhas enviadas à maquina de escrever ou à mão e
grampeá-las. O jornal que "nunca foi escrito" é apenas uma expressão para identificar esse espírito original do Não, de juntar folhas que vão sendo grampeadas, dando uma idéia de movimento, de um jornal que nunca está pronto, portanto, tem sua essência no fato de ser sempre inacabado.

Também não pensei que exercer a crítica fosse criar melindres ou deixar as pessoas envaretadas. No Não sempre houve matérias de discussões acaloradas e carinhosas, tudo ao mesmo tempo.

Meter o pau em Daniela Mercury porque ela foi encarregada de ser a porta-bandeira da eleição do ACM é uma tolice dita por quem só pensa a política em termos de marketing. Aí fica fácil de se analisar quem é o bandido e quem é o mocinho. Temos apenas que escolher o time, vestir a camiseta e chutar em gol. Só que nem todos nós estamos à beira de uma terrível decisão íntima que é
aderir ao PT ou ao governo do Estado ou não. Não é essa a questão central da existência de uma porção de gente nesse planeta. Graças a Deus. A reflexão não pode caber no marketing seja ele a favor ou contra. A crítica não pode ter limites. Pensei que
isso era o be-a-bá.

Primeiro erro: reduzir uma cantora da música popular ao papel que, supostamente, ela está fazendo no jogo político. No fundo, ainda estão jogando ovos na Carmen Miranda. É incrível que essa redução seja iniciativa de um artista. Isso, sim, é apavorante, mais do que uma provável ou improvável eleição do ACM (a confissão de ter medo de ACM, embora digam que ele é ruim de voto fora
de seu terreiro, é comovente de tão ingênua). "Não podemos facilitar" é de morrer de rir. Daniela Mercury canta bem, ou não, e é isso que se trata quando se fala dela. Como uma oponente intelectual de editorialistas pseudo sofisticados ela é sem nenhuma dúvida cachorro morto, não tem a menor condição de se defender, não tem suporte intelectual, é evidente. Foi só isso que escrevi.

Meter o pau em Caetano Veloso, bom, aí já começa a ser mais equilibrado, para fazer um elogio ao Jorge. Não posso concordar, no entanto, que se queira instaurar uma linha divisória entre os que estão a favor da verdade, do povo, da humanidade, da justiça, da liberdade, da palavra, e os que estão do outro lado, provavelmente num spa com o Britto. É stalinismo requentado, porque quem
mexe a corda divisória entre o bem e o mal é sempre o editorialista convicto, que para mim é chato e perigoso como o pastor da televisão.

A citação a Mário Quintana é brincadeira de criança, é um elogio ao humor que Quintana incorporou como ninguém. É na mesma linha de "as perguntas que eu me faço, eu as faço publicamente" que Jorge não entendeu, nem de longe, porque se viu na obrigação de fazer uma lista dos "pecados" políticos e ideológicos de Caetano, como se fosse um oficial do Santo Ofício. Em certos casos, expor as dúvidas é muito mais enriquecedor e produtivo para a discussão pública dos grandes problemas da humanidade do que pegar carona num discurso previamente alinhado com o partido ou o governo. O artista cumpre um papel muito mais eficaz para a transformação das abissais desigualdades sociais quando vive ele próprio mais profundamente sua humanidade. É só isso. Quem quiser entender, entenda. A ânsia de defender um governo que está sendo atacado de modo oportunista pelos que perderam a
eleição e não se conformaram até hoje é perfeitamente compreensível, mas não pode justificar tudo. A referência a Caetano é só para ir contra essa histeria que usa como pretexto a marcha anti-ACM para mascarar o racismo sulista, a idéia de que esses baianos são todos iguais e é preciso acabar com eles antes que seja tarde (quem viveu em São Paulo, a maior cidade nordestina do mundo, que elege Paulo Maluf, mas também Erundina, sabe do que estou falando).

Jorge afirmar que "a poesia não trata da realidade" e sim da palavra, ao contrário do jornalismo, para mim é esclarecedor. É o ponto central. Ele acha que tem em mãos "a realidade". Esse é o cerne do autoritarismo. Dizer que a poesia tem a ver com a "palavra" e não com a "realidade" é recuar ao pré Artaud, Picasso, surrealismo, é fingir que isso tudo não aconteceu, é a coisa mais reacionária que eu li nos últimos sei lá quantos anos. Também ficar respondendo usando frases que eu escrevi é truque manjado de quem não conseguiu ainda articular seus próprios argumentos.

É como ouvir o Paulo Flores na Ipanema FM falando das mil maravilhas que é a vida em comunidade da Terreira da Tribo, quando todos sabemos que a convivência lá dentro (e aqui fora) é uma batalha terrível de vida e morte. Se ele admitisse suas dificuldades para vivenciar a nova ordem social que tanto prega, puxa, como seria mais brilhante e encorajador!

A citação a Quintana é, além do mais, pura invenção. Que eu saiba, Quintana jamais escreveu que o ronco dos jornalistas ou seja lá de quem for iria acordar os passarinhos. A associação entre o ronco e os passarinhos saiu na hora, gozação infantil. Era uma brincadeira com a falsa erudição desses debates religiosos. É surpreendente que Jorge caia nessa e ainda responda mandando os passarinhos se foder.

Incrível.

Meu impulso de escrever a carta esculhambando o Não foi tão inocente quanto o de mandar uma carta indignada diante das pesquisas da Ufrgs e a manchete de Zero Hora, de madrugada, imediatamente após ler o jornal na Internet. Foi uma necessidade de profilaxia, de limpar as invisíveis e efetivas linhas que nos unem. O Não tem que ser criticado de dentro para fora, é uma condição
prévia para sua existência, caso contrário, vai mofar. O Pasquim em estado terminal virou jornal do Brizola. O Versus ficou sendo porta-voz de grupos trotskistas. A agonia dos jornais é sempre deprimente. Minha carta foi no sentido de evitar que isso aconteça com o Não, talvez seja um temor inútil que eu tenha, como tantos outros.

De tudo isso, o que fica é o seguinte: criticar o Não ainda é tabu. Tem que elogiar sempre, e é o que eu pretendo continuar fazendo nos próximos 20 anos. Argumentos não me faltarão.

Abraços. Foguinho.
pauloejaque@uol.com.br
 
 
PS: O problema do e-mail é que você não pode refletir o suficiente antes de mandar. Uma carta a gente escreve e depois dorme, no outro dia vai no correio, pega umas moedas, lambe o dedo, passa a cola (acho que por preguiça de fazer tanta coisa eu quase não escrevo cartas), tem muito tempo para refletir se a carta deve ou não ser enviada, ou ao menos se ela está pronta para ser mandada. O e-mail é instantâneo e, por isso, paradoxalmente, por ser mais automático, é também mais sincero.

PS2: Por esse motivo, vou mandar o e-mail agora, quase 6 da manhã, e não ler amanhã, como tinha pensado.
 



Nota do editor 2: Falha de memória, Paulo César. O Não 32, de agosto de 1978, tinha na capa uma letra do Gilberto Gil ("viva o índio do xingu") e na contra-capa o seguinte crédito: "responsável pela esculhambação desse número: Foguinho".

Nota do editor 1: Para entender os antecedentes deste texto, leia as CARTAS AO NÃO números 129 (de Paulo César Teixeira), 135 (de Jorge Furtado) e 136 (de Carlos Gerbase). Depois volte para o...