TAKES SAXÁTEIS 

Por Ariela Boaventura

          Tudo começou com aquele barulho ferrolhento e maluco: péum péum péum péum péum péum. Foi depois disso que veio o absinto, raios de meio watt é isso? 

          Acho que poderia passar dias ininterruptamente fazendo amor com você, ele disse, tempos depois. Porque antes era só esse barulho de péum péum péum e a furadeira.

          Na verdade, lembro de poucos instantes. Tipo em flashes, uma cena aqui e outra alhures, sem a menor ordem. Conversamos, rimos, ele cantou e ele canta com olhos fixos nos meus e canta melodioso. E depois aquilo, aquela loucura que não lembro de mais nada, eu só existia, sem consciência nem corpo. E não o enxergava, a não ser o par de olhos e o sorriso de quando em vez, quando eu tirava coragem para olhar, que eu tinha era medo do que poderia estar a acontecer, embora não pudesse pensar.

          Furacão quando passa, tipo. Tu é colhido, levado, sem querer, sem sentir, tamanha a força da coisa. Foi assim.

          péum péum péum mais enlouquecida ia ficando, não enxergava nada além de felicidade, uma energia um bloco de toneladas de.

          E então, a deixa, a cena mais absurda que já vi e que já passei: tanto pelo insólito, quase burlesco, como pela minha própria reação, se é que pode-se chamar aquilo de. Que eu estava simples, pura, existindo em outras idéias. Einstein explicou bem isso, de universos paralelos.

          Então eu senti. Na perna direita, sobre a meia, discretossorrateira, a mão. E desesperei, meu deus, vamos ter calma, ui! onde foi que ficou a minha razão hoje, sei lá, não coube na bolsa? E o membro cheio de dedos ali, e como se não bastasse a mão e os movimentos discretos - mas enfim, mexiam-se os dedos sobre a meia, e eu gostava disso, gostei desde a hora do péum péum mas não sabia e agora tinha certeza de quase nada mas algo já sabia, e como se isso tudo - tudo o que havia acontecido até então e que eu nem tinha tomado conhecimento em nível de razão - não fosse já o bastante, aí veio a tua voz.

          Dormi sorrindo. 

          Acordei babando e com fome. 

          Lembrei que iria ao cinema e quase mandei tudo às favas em prol do travesseiro de penas e o cobertorde lã e a cama: ninho. Mas não adiantou nem tentar convencer-se de preguiça: o corpo se levantou e foi até o chuveiro e ali lavou-se de todo o mal e de todo o bem e de dentro dele saía voz cantante. Não lembro qual música.

          Eu vou me embora. É.
          Vou pro Arraiá da Juda, largo tudo. É.
          Vou pro Arraiá, onde vou encontrá um cabeludo enorme
          bom de cama mesa e banho. Eôôô
          E que terá um umbigo periclitante que faz lã
          (embora frio não faça lá).
          Voilà
          Vou pro Arraiá, catar minhoca cultural, curar a rinite,
          Cantar com zeca baleiro e secar as feridas do frio. É.
          Ôôôô, eu vô pro Arraiá da Juda, eu vou.
          Péum péum péum péum (isso é o pedal da semi-acústica)

          Ah, os equívocos. Sim, sim. Tu pensa que tá rumando pra um lado, mas parece mais um jabuti canhestro, que anda para os lados e é cego de todos os olhos. 

          É. E então, num instante, o mundo se transforma, nada é como no minuto passado, e a nêga alopra. Ah, se alopra! O que ontem tinha a importância de um papel em branco se transmuta em um Ulisses, gigantesco. Lobectomia, sim, sim. E dê-lhe pardelhas e delhas de energia, a imaginação fica psicótica, sem limite. Capaz de tudo. Não é nem de perto histeria, não é cio, é adrenalina, é ovelha a pastar no pensamento que não acaba mais, rebanhos e rebanhos para pentear. E quando termina a última ovelha, a primeira já está toda escabelada.

          Cabeludas, essas ovelhas. Degringoladas.

          Elas têm um umbigo que faz lã? Sabe lá se. E mesmo se, jamais saberei, será? 

          Um bigo, dois bigos, morder.

          Flashbacks vêm em cenas péum péum péum péum fazia a guitarra blues e eu só lembro de uma enorme pata sobre minha perna, assim, rapidinho, meio que sem querer. E veio o calor, a verve tomando o corpo numa febre e depois tudo apagou. Desmaiei.

          Outra cena aparece uma boca a falar e a sorrir e dentro dessa boca havia, meu deus!, havia dentes lá e todo o conjunto era como os olhos da medusa a hipnose paralisando minha língua.

          Língua bífida, em dois. Bife: morder.

          Roçardelábios, assim, de leve, com cuidado para não me assustar com o perigo. Mentira: amo o perigo. E já vem outra cena, o cabelo sendo solto do rabo-de-cavalo imenso como o todo tudo todo toso todo tudo todo enorme, em slow motion, a cena, em contraplongée, pequena que sou.

          Um desperdício tanto ser para pouca ação.

          Coisaboa, cheia de pelinhos. Er... meiobãhn, banza.

          Doloridadetudotodofinde. Coisaboa, cheia de dorzinhas. Ruim que acaba. Se é que as coisas tem início e fim, duvida de tudo. Mas não paga páver, pavê. No momento demente estoy. Sem mente semente se e somente se. Nada quer dizer, a não ser dentro de um contexto, com texto ou sem. Tudo pra falar de coisas delicadas e possíveis em questão de quatro paredes mas fora não porque por que por que e nada sai. Ninguém diz, ninguém pensa só faz e faz e faz. Acumula daí, então então ão ecoecoecoeco. Isso tudo é o que o Joyce me faz na cabeça, inda bem que só. Inda bem, nada. Sonho com Baudelaire todanoite acordo meio ahn tipo como exatamente tu imagina. Assim. Sim. Sim. Sim. (Isso não se diz, apenas se afirma com a cabeça em certashorasdoidas, coisaboa). E eis que ela criou torto certomundo de tal maneira que concluiu: é bom. E tudo o que fez e desfez e criou e destruiu (sim, sim, destruiu, também), tudo o que veio de bom foi para o bem e o de mal também. Daí a confusão: acordou certafeita desfeita de prazer, mas pensou: não é sonho. Pastiches, profiteroles, pêssegos e gustavinhos miúdos, por favor, pois que são os mais saborosos cogumelos já sonhados. Vamos fazer um gãn-gãn-gãn?