Você acha que as máquinas vão dominar o mundo daqui a 100 anos?
Escreva sua opinião sobre a questão HOMEM x MÁQUINA.
 

Uma pequena introdução:

Escrevi este texto há dois anos atrás, para falar um pouco sobre as diferenças entre humanos e máquinas. Apesar do medo sempre presente (vide a quantitade de filmes que tratam sobre o assunto, desde "Metropolis", de Fritz Lang a "Ghost in the Shell", ótimo desenho japonês, sem esquecer a coqueluche do momento, "The Matrix") de que um dia "elas" irão finalmente nos dominar, o tom do artigo é de ceticismo. Se por um lado não descarto categoricamente a possibilidade, pelo menos passo a idéia de que isso ainda está longe de acontecer.

No último dia 2 de junho, porém, leio a notícia da criação do primeiro bio-computador, construído com uma mistura de neurônios vivos e chips de silício. Profeticamente (será?), foram usados neurônios de sanguessuga. Meu ceticismo sofre um abalo. A idéia de ciber-sanguessugas não parece particularmente assustadora em si, mas... e se amanhã usarem neurônios humanos? Tudo bem, talvez a ética impeça esse tipo de experiência, mas quem sabe neurônios de golfinhos? Não corre por aí um boato de que eles são mais inteligentes do que nós? Vocês devem estar rindo a essa altura, mas eu estou assustada. Ah, como era bom o passado longínquo de dois anos atrás quando tudo o que nos preocupava era um computador que jogava xadrez...


Deep Blue x Kasparov:
A Revanche

por Lenara Verle
Novembro de 1997


O fato do computador especializado em xadrez da IBM, Deep Blue, ter ganho do campeão mundial humano, Garry Kasparov, em maio deste ano (em uma série de 5 partidas, Kasparov ganhou uma, empatou duas e perdeu mais duas) desencadeou vários comentários sobre o assunto "homem versus máquina".

Um ano atrás, Kasparov havia jogado com uma versão mais antiga do Deep Blue e ganhado a série de cinco partidas (apesar de perder a primeira partida - sua primeira derrota para um computador). O tom dos comentários então era de alívio generalizado: ainda éramos "superiores" à máquina - pelo menos no xadrez.

Agora isso mudou. Kasparov, e junto com ele nossa espécie, foi derrotado por uma máquina. Em um artigo escrito logo após a vitória de Kasparov em 1996, intitulado "Deep Blue ou a melancolia do computador", Jean Baudrillard discorre sobre o assunto, aventando (de uma maneira que poderíamos chamar de profética) a possibilidade próxima de uma vitória do computador.

Dentre outras coisas, Baudrillard fala sobre nossos desejos e medos ao criar um computador que possa derrotar a nós mesmos. Ao mesmo tempo em que nos equiparamos a Deus - nosso criador - também criamos um ser superior a nós, e assim nos tornamos obsoletos.

"O homem, ao mesmo tempo que sonha com todas as suas forças em inventar uma máquina mais forte do que ele mesmo, não pode admitir a possibilidadede não ser o mestre de suas criaturas. Tanto quanto Deus. Poderia Deus ter sonhado em criar o homem superior ao criador e em enfrentá-lo num combate decisivo? É o que, contudo, fazemos com nossas criaturas cibernéticas, às quais oferecemos a oportunidade de nos derrotar."
(Baudrillard, 1997, p. 134)

Mas afinal, quem - ou melhor, o que - é essa máquina que nos "derrotou"? Como ela funciona?

Na página da IBM na Internet sobre o Deep Blue (http://www.chess.ibm.com) podemos encontrar um texto chamado FAQ (Frequently Asked Questions, ou perguntas mais frequentes). Não só as respostas, mas também as perguntas que constam ali são muito interessante. Entre elas estão:


  • Porque a IBM gasta milhões de dólares e anos de pesquisa para contruir o melhor computador enxadrista do mundo?
  • Porque é tão difícil para o Deep Blue ganhar de Kasparov se os computadores podem calcular jogadas de maneira espantosamente rápida?
  • O Deep Blue usa inteligência artificial?
  • Como Deep Blue "pensa"?
  • O Deep Blue usa a psicologia?
(IBM Corporation, 1997, http://www.chess.ibm.com/me et/html/d.3.3.html)


Também encontramos uma curiosa comparação entre as táticas usadas por Deep Blue e por Kasparov:


10 diferenças entre Kasparov e Deep Blue

1. Deep Blue é capaz de examinar e avaliar até 200.000.000 jogadas por segundo.
Kasparov é capaz de examinar e avaliar até 3 jogadas por segundo.

2. Deep Blue tem pouco conhecimento de xadez e uma enorme capacidade de cálculo.
Kasparov tem um enorme conhecimento de xadez e uma capacidade de cálculo um pouco menor.

3. Kasparov usa seu soberbo "feeling" e intuição para jogar xadrez como um grande mestre.
Deep Blue é uma máquina, incapaz de sentimentos ou de intuição.

4. Deep Blue conta com a orientação de uma equipe de 5 cientistas da IBM e um mestre de xadrez internacional.
Kasparov conta com a orientação de seu técnico, Yuri Dokhoian, e sua paixão, que o motiva a jogar o melhor xadrez do mundo.

5. Garry Kasparov é capaz de aprender com seus erros e acertos, e se adaptar muito rapidamente.
Deep Blue, no momento, não é um "sistema de aprendizado". Desta maneira, não é capaz de usar inteligência artificial para aprender com seu oponente ou "pensar" sobre a posição no tabuleiro.

6. Deep Blue não pode se esquecer, se distrair ou se intimidar com forças externas (como o famoso "olhar" de Kasparov).
Garry Kasparov é um competidor formidável, mas ainda assim é suscetível a fraquezas humanas como cansaço, tédio e perda de concentração.

7. Deep Blue é assombrosamente eficiente em resolver problemas de xadrez, mas é menos "inteligente" que o mais burro dos seres humanos.
Garry Kasparov é altamente inteligente. Ele é o autor de três livros, fala várias línguas, é ativo politicamente e é regularmente convidado a dar palestras em diversas conferências.

8. Quaisquer mudanças na maneira de jogar xadrez de Deep Blue devem ser feitas pelos membros da equipe de desenvolvimento, entre uma partida e outra.
Garry Kasparov pode alterar a maneira como joga a qualquer momento, antes durante ou depois da partida.

9. Garry Kasparov tem a habilidade de avaliar seu oponente, sentir suas fraquezas e tomar partido delas.
Apesar de Deep Blue ser muito bom em avaliar posições de xadrez, não é capaz de avaliar as fraquezas de seu oponente.

10. Garry Kasparov é capaz de determinar sua próxima jogada através de uma busca seletiva entre as posições possíveis.
Deep Blue precisa conduzir uma extensa busca entre as jogadas possíveis para determinar o melhor movimento
(o que não é tão mau quando se é capaz de avaliar 200 milhões de posições por segundo).

(IBM Corporation, 1997, http://www.chess.ibm.com/meet /html/d.2.html)


Ao comparar seres humanos a computadores, Baudrillard fala neste e em outros artigos que o que mais o preocupa não é a "humanização" das máquinas, mas a "robotização" dos seres humanos. Ora, ao que parece isso está longe de acontecer. Se por um lado ainda não conseguimos programar máquinas para replicar nossa "humanidade" - não só nossas inteligências como nossas emoções - também não logramos desafiar nossa "programação" genética. Não conseguimos deixar de lado nossa humanidade. Por mais que as técnicas de lavagem cerebral e lobotomização tenham se desenvolvido, sempre sobra um resto de ímpeto humano pronto a aflorar. E isso é mais do que qualquer computador já conseguiu até hoje.

No cenário apresentado no romance de ficção científica "Duna" (do qual se originou o filme de mesmo nome, dirigido por David Lynch) todos os computadores foram destruídos em um jihad interplanetário cuja máxima é: "não construirás a máquina à semelhança do homem". Ironicamente, para substituir os computadores são treinados humanos chamados "mentats". Mas o contexto é bem diferente. As capacidades "computacionais" dos "mentats" não são usadas para resolver problemas lógicos ou matemáticos, mas para problemas sociais e psicológicos. A partir de um franzir de olho de um barão e meia dúzia de palavras de uma freira, um "mentat" pode descobrir, em seus mínimos detalhes, a trama para derrubar um duque.

Talvez o que tenha levado os habitantes do universo de Duna a destriur os computadores tenha sido o mesmo medo que muitos de nós sentimos ao saber da derrota de Kasparov - o medo de sermos superados, e até mesmo substituídos por máquinas mais inteligentes do que nós.

Mas em que medida ganhar um jogo de xadrez é uma avaliação de inteligência? Segundo a IBM, Deep Blue é mais "burro" que qualquer ser humano. O que então permitiu a ele derrotar Kasparov?

Apesar de considerarmos exímios jogadores de xadrez como Kasparov pessoas muito inteligentes e talentosas, na verdade essa é uma habilidade muito restrita quando comparada ao potencial de nosso cérebro. De fato, outra das perguntas do FAQ diz respeito ao fato de em áreas como o xadrez, a música e a matemática existirem muitos talentos precoces.

A resposta é que o xadrez é uma disciplina que se constrói a partir de um número limitado de "tijolos" fundamentais. À medida que as coisas se tornam mais complexas, a experiência passa a contar mais para a solução de problemas. Uma estratégia de "tentativa e erro", a partir de "variáveis" e "possibilidades de permutação", como a utilizada pelo Deep Blue deixa de ser eficiente. No entanto, o jogo de xadrez, dentre muitos outros inventados pelos humanos, tem regras relativamente simples. Segundo o FAQ do Deep Blue:

"Já foram criados computadores para jogar muitos outros jogos além de xadrez, mas nenhum desses jogos é tão interessante do ponto de vista de pesquisa. Não há nenhum interesse científico em se dedicar a jogos de azar, como a roleta ou os dados, que são apenas uma questão de sorte e probabilidades. Dentre os chamados jogos de estratégia, o jogo de damas e o jogo-da-velha estão em um nível inferior ao xadrez. São apenas jogos táticos que podem ser facilmente compreendidos por um programa de computador. Porém é muito mais difícil para um computador jogar o antigo jogo oriental Go. Os melhores programas de Go já escritos até hoje conseguem apenas jogar uma partida medíocre."
(IBM Corporation, 1997, http://www.chess.ibm.com/m eet/html/d.3.3a.html)

Quando o poder de cálculo dos sucessores do Deep Blue permitirem a eles analisar virtualmente todos os desdobramentos possíveis a partir de cada jogada, as partidas se transformarão em uma série de monótonos empates, como acontece hoje com o jogo-da-velha.

Enquanto isso não é possível, os programadores tentam compensar as desvantagens do Deep Blue adicionando a ele um banco de dados de jogos já realizados anteriormente por humanos. É como "tomar emprestada" um pouco da experiência humana.

Se uma máxima popular diz que "jogar xadrez desenvolve incrivelmente a habilidade de... xogar xadrez", os técnicos que programaram o Deep Blue afirmam que seus modelos de precessamento paralelo podem ser facilmente direcionados para outros objetivos, como a indústria farmacêutica e a bolsa de valores. Os chips e conexões do Deep Blue fornecem a "força pensante", mas os programadores determinam sobre o que o Deep Blue deve pensar. Como fala Baudrillard, ele pode jogar muito bem a partir de um conjunto de instruções, dentro das "regras do jogo" - mas ao contrário de um ser humano, não é capaz de inventá-las.

Apesar de não ser capaz de criar sua própria experiência, ou aprender com seus erros (o que configuraria uma forma de "inteligência artificial"), Deep Blue pode de certa maneira usar a experiência de jogadores humanos, como o próprio Kasparov, e imitá-los quando necessário. É o que se chama hoje de um "sistema especialista", onde vastas quantidades de informações sobre um assunto muito específico são armazenadas em um computador, e ele pode "tomar decisões" a partir da experiência acumulada por seus predecessores humanos.

Alguns sistemas especialistas em "convívio social" já conseguem passar hoje em um teste limitado de Turing. (o teste de Turing diz que um computador é dotado de inteligência igual à humana quando consegue se fazer passar por humano em uma "conversa" com um observador humano ignorante da verdadeira identidade de seu interlocutor.)

Um exemplo do caso acima é Julia, um software que mora nos MOOs (espécie de jogos de RPG, ou "realidades virtuais" textuais, em uma mistura de comunidades virtuais com literatura interativa que existe na Internet), e é comprovadamente mais inteligente que alguns seres humanos, segundo os padrões de Turing.
(Turkle, 1997)

Mas apesar de poder "contar" várias piadas constantes de seu banco de dados a outros jogadores do MOO, Julia é incapaz de achar graça em nenhuma delas.

Como diz na página da IBM, e no artigo de Baudrillard: "Deep Blue, ao contrário de Kasparov, não é capaz de ficar alegre com suas vitórias, nem tampouco triste com suas derrotas." Quando registrarmos casos de computadores afetados por uma genuína melancolia, aí sim, talvez seja a hora de nos preocuparmos com a sobrevivência de nossa espécie.


Referências Bibliográficas:


  • Baudrillard, Jean. Tela Total. Porto Alegre, 1997. Editora Sulina.
  • IBM Corporation. Kasparov x Deep Blue: The Rematch. 1997. [online] <http://www.chess.ibm.com>
  • Turkle, Sherry. Life on the screen. New York, 1995. Simon & Schuster


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