Dolores

Por Miguel da Costa Franco

          Dolores Pena entrou em minha sala como ventania outonal, que abre todas portas e janelas da casa ao mesmo tempo. Esvoaçaram os meus papéis mal rabiscados, vasos de plantas despencaram das muretas estreitas da escada, num redemoinho de poeira varrida das calçadas. Espalhou-se um cheiro de manjericão - talvez salsinha - pelo ar mal-cheiroso da sala, refém por dias e dias de uma umidade constante e pegajosa.

          Tinha suas urgências Dolores Pena. Parecia haver-me procurado, uma a uma, pelas trocentas salas do prédio.

          Envolto em meus papéis, na Central da Putaria - onde passara a trabalhar - a vi entrar assim, disposta a tudo, com um certo desdém de burocrata. Seu assunto não devia ser comigo.

          Tinha o corpo esguio e altaneiro, os cabelos enegrecidos e rebeldes, os bicos dos seios apontando firmemente para o norte por detrás do blusão de malha avermelhado.

          Foram seus insistentes olhos negros - ou talvez assim os visse pelo tom da maquiagem em seu contorno - que me fizeram dirigir-lhe, então, os meus, absorto que estava em meu trabalho.

          Fora do meu contexto de leis e regulamentos e falcatruas de toda a sorte, veio ela a me falar de blues e poesia, de caminhadas pela praia do Rosa e do Ouvidor, de uma afinidade infinita com a busca de Cobain.

          Desnudada por meus olhos, pareceu-me saída de um quadro de Gauguin que me agradara, uma "maja desnuda" bem menos gorda. Soube ouvi-la com a atenção que dispensaria a uma fada pousada em minha carimbeira.

          Mas não soube falar-lhe com respeito. Nem tive tempo. Espantei-a com uns poucos monossílabos quando esperava de mim estrofes repolhudas. Mas não era eu o afamado poeta? O famoso autor de "Meu cachorrinho também riu"? Um John Fante argentino ou o Dalton "Vampiro" Trevisan, renascido em Porto Alegre?

          Foi e voltou de minha sala por diversas vezes, ora me beija ao sair, ora me xinga já da porta. Às vezes se apresenta como Das Dores Penha, seu lado mais inconsequente.

          Não sei bem por qual processo se interessa, ou se em verdade é mesmo a mim que se dirige. Parece-me, às vezes, que seu olhar esverdeado - ou seria melhor negro? - me passa por sobre o ombro, como se houvesse um outro eu mais conveniente na escrivaninha mais adiante.

          Deixou-me apenas um postal meio azulado, cume negro entre nuvens branquicentas, e um endereço incompreensível num decalco de dragão.

          E eu juropordeus que o dragão sacode o rabo sempre que eu descanso os olhos nele.