FORD OU NÃO FORD?

Por José Ricardo Tauile

          Premidas pela liberação das importações de veículos no início da década de 90, as quatro montadoras automobilísticas então instaladas no Brasil aceleraram seus planos de investimento. Começaram com o lançamento dos chamados carros populares, a partir dos acordos da Câmara Setorial, e estenderam-se até a decisão (quase todas) de instalar novas plantas para produzirem modelos inteiramente novos.

          Tais planos foram acompanhados pela vinda de várias novas montadoras. Chegou-se a estimar que a capacidade produtiva da indústria automobilística no Brasil dobraria alcançando, no início da próxima década, cerca de 3,5 milhões de veículos anuais. A justificativa para esta decisão "coletiva" poderia ter dois vetores. Primeiro, no plano interno. O Brasil tem sido considerado um dos três países de maior potencial de crescimento de mercado no mundo, juntamente com a China e a Índia.

          Com a ascensão de FHC à Presidência da República, e por tudo que pregou até então, esperava-se que se iniciasse um processo de redistribuição de renda, fundamental para a ampliação estrutural do mercado de automóveis. O sucesso inicial do Plano Real, que provocou alguma redistribuição de renda nos dois primeiros anos do seu governo, parecia confirmar aquela expectativa. Além do mais, a estabilidade da moeda viabilizava a reabertura de mecanismos eficazes de financiamento de vendas de veículos (crédito direto ao consumidor, leasing, consórcios, etc.). Tais mecanismos são importantíssimos para alavancar as vendas de veículos. Assim é que nos EUA, no início da década, 95% dos veículos eram vendidos a prazo e apenas 5% à vista. No Brasil, era o contrário, somente 5% das compras eram financiadas.

          Após o crescimento vertiginoso das vendas (que chegaram a atingir 2,2 milhões de veículos em 1997) houve uma significativa inflexão na curva de expectativas que se refletiu em uma dramática queda nas vendas já em 1998. Esta queda agravou-se desde o início de 1999, com a crise cambial e a desvalorização do Real.

          Em segundo lugar, no que tange ao vetor externo, poder-se-ia supor que, por diversas considerações que aqui não cabe detalhar, o Brasil passasse a ser considerado pelas grandes montadoras internacionais como um local propício para sediar um importante pólo produtor e exportador mundial de veículos. Mas aqui também há um problema. No início da década, havia um excedente bastante significativo de cerca de 8 milhões de veículos da produção sobre a demanda mundial que devia ser "desovado" anualmente. Logo, para se tornarem exportadoras em níveis significativos, as empresas aqui instaladas ou que viessem a se instalar aqui, teriam que reduzir a produção ou mesmo fechar fábricas em outros países, o que nem sempre é simples.

          As exportações brasileiras de veículos que se seguiram, ficaram praticamente confinadas no âmbito do Mercosul. Em contrapartida, o mercado brasileiro passou a ser fundamental para alavancar o desenvolvimento da indústria automobilística na Argentina. Daí a crise cambial brasileira ter afetado profundamente as referências do comércio com a Argentina, contribuindo para um iminente (e, provavelmente, forte) ajuste econômico naquele país que poderá afetar, ainda mais, a lógica de formação do Mercosul.

          No que concerne especificamente à Ford do Brasil, em meados da década de 80, seu desempenho era animador. Além de exportar Escorts até para a Escandinávia, sua fábrica em São Bernardo chegou a ser considerada a 11a em qualidade dentre mais de 50 plantas da Ford em todo o mundo. Ultimamente, entretanto, seu desempenho no mercado brasileiro - o pior das quatro montadoras aqui instaladas - tem sido sofrível se comparado ao de sua matriz.

          Sua decisão de instalar uma fábrica em Guaíba, junto a Porto Alegre, seguindo os passos da GM, não revela um estratégia clara mas estaria, provavelmente calcada em dois fatores principais. Primeiro, a posição geograficamente central daquela região em relação ao Mercosul e, segundo, as excepcionais facilidades que o governo anterior daquele Estado lhe havia concedido. Seriam cerca de 500 milhões de reais no curto prazo, para montagem da fábrica e obras de infra-estrutura para seu funcionamento, e 3 bilhões de reais ao longo do tempo por diferimento de impostos estaduais e outros incentivos (além do apoio do BNDES, que estaria limitado a um empréstimo de U$ 500 milhões, por conta dos empréstimos anteriormente contraídos pela Ford para unidades produtivas do Estado de São Paulo). A lógica para viabilizar esta concessão, por não haver recursos orçamentários do Estado, era vender patrimônio público através de privatizações de companhias estaduais (tal como a de saneamento).

          Com a atual reversão do mercado e com as expectativas pífias para o futuro próximo, o intuito do novo governo daquele Estado, de rever as condições de subsídios e financiamentos prometidos pelo governo anterior em meio a uma predatória guerra fiscal, provavelmente serviu como pretexto para que a Ford desistisse daquela opção e pudesse reavaliar seus projetos. O fato não é isolado pois os planos de construção de uma nova linha para substituir a produção do Escort na fábrica da Ford em Pacheco, na Argentina, aparentemente também foram, pelo menos, adiados.

          Sem a pujança do Mercosul, por que não repensar a localização desta nova unidade produtiva? Quem sabe uma outra ou mais ampla linha de produtos, mais eficaz para atender o mercado de outras regiões do próprio País (dado que os dois modelos de automóvel que fabrica aqui não vendem bem)? Tudo isso são especulações. Há fortes indicações, isto sim, de que a Ford no Brasil não tinha mesmo (pelo menos até então) uma estratégia clara para disputar a liderança do mercado nem aqui, nem no Mercosul. As especulações acabaram com o recente anúncio de que a Ford decidiu ir ver o que a Bahia tem, numa decisão eminentemente política. De fato, com uma linha de produtos mais ampla e uma escala de produção (bem como uma geração de empregos diretos e indiretos) duas vezes e meia superior à prevista para a suposta planta do Rio Grande do Sul, o projeto contará também com um apoio de R$ 1 bilhão por parte do BNDES (que aparentemente estendeu os limites anteriormente estabelecidos para a própria empresa, em função de o investimento ser agora na Bahia, região incentivada).

          Especificamente, sobre a fábrica de Guaíba, tirando eventualmente, algum departamento da Ford, ninguém tem claro qual a linha de produtos que deveria ser oferecida. Segredo industrial? Pode ser mas, francamente, o que sim parece claro é que naquele episódio, a Ford do Brasil adotou uma posição conservadora (em todos os sentidos) até, talvez, para poder mudá-la mais adiante, não se dispondo, assim, a correr qualquer risco, por menor que fosse o ajuste desejado pelo atual governo do Rio Grande do Sul. Vale notar que a diferença entre o valor total do apoio que o governo do RS se propunha a oferecer e o que a Ford exigia não parece justificar - pelo menos economicamente - o drástico rompimento de negociações por parte desta empresa. No mínimo, não foi nada elegante. Agora se sabe, foi também um ato político.

          Quanto aos reais prejuízos para o Estado do RS, eventualmente acarretados pela desistência da Ford (e afora os interesses políticos aí envolvidos) cabe indagar sobre a quantidade e a qualidade dos postos de trabalho que se vai deixar de ganhar. Em princípio, é claro que seria ótimo para o RS ter uma fábrica da Ford lá mas, no caso específico, é imperioso avaliar qual o preço a pagar por isso. É bom lembrar que já vai longe o tempo em que uma fábrica da Ford (ou de qualquer outra grande montadora) significava necessariamente muitos empregos e afluência (elevado bem estar material) para seus trabalhadores.

          O estudo de Najberg e Vieira, publicado na revista PPE do IPEA de abril de 1997, utilizando a matriz insumo/produto brasileira confirmou que, em relação ao estímulo para o conjunto das indústrias, o setor automóveis/caminhões/ônibus tem alto poder de expansão da produção agregada. Não obstante, em relação à geração de empregos, constatou que tal setor gera uma baixa demanda por empregos (foi classificado em 36o lugar entre 41 setores analisados).

          No que concerne a esta fábrica da Ford, é possível afirmar que, estando na fronteira da tecnologia, ela geraria relativamente poucos empregos diretos (segundo indicações da montadora, estariam entre 1.500 e 1.800 postos de trabalho) e que estes seriam muito caros, tendo em vista o montante do investimento previsto. Ademais, a maioria destes postos de trabalhos parecem exigir baixa qualificação dado que na Assembléia Gaúcha, a Ford declarou que o salário médio seria de R$ 600,00, o que, convenhamos, não é grande coisa para uma indústria deste porte.

          No que tange aos empregos indiretos, seus efeitos são ainda mais obscuros, pois não se sabe que partes de sua cadeia produtiva estariam concentrados em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em outro estado do Brasil, ou mesmo no exterior. Quanto à fábrica da Bahia (e com escala de produção prevista ampliada), a própria Ford anunciou que serão gerados 5.000 empregos diretos e 50.000 indiretos. Em qualquer dos dois casos uma coisa é certa; a maioria das atividades consideradas "nobres" relativas àquela unidade produtiva, tais como aquelas inerentes à realização de projetos e a tomadas de decisões estratégicas, não estariam no Rio Grande do Sul, nem estarão na Bahia.

          Ao governo do RS cabe responder rapidamente o que pretende colocar na área, já terraplanada do município de Guaíba, pois afinal "não se tira picolé da boca de criança na praia impunemente". Mais do que isso, tendo sido infrutíferas as negociações com a Ford cabe agora a esse governo apresentar um projeto alternativo que gere mais e melhores empregos para o Estado, até mesmo para enxugar as lágrimas das "viúvas locais da Ford".

          Quanto ao governo federal, deveria imediatamente "assumir sua responsabilidade de implementar políticas industrial e regional adequadas para alavancar oportunidades de desenvolvimento no âmbito nacional", bem como tomar iniciativas para "preservar a harmonia entre os Estados e os Municípios redistribuindo os meios econômicos de modo a atender melhor cada ente federativo"2. Afinal, como diriam Arbix e Rodriguez-Pose, em recente trabalho ainda não publicado, a guerra fiscal entre os estados brasileiros sequer tornou-se um jogo de soma zero em termos de concorrência territorial estando, no plano nacional, mais para "puro desperdício"3. Um jogo de perde-perde entre nós, brasileiros. Lamentável.