J E AS BARATAS

por Eduardo Canto Machado

(edcanto@zaz.com.br)

Jamursh, mais conhecido como Jam-ursh, acordou bem cedo no sábado. Eraaum dia nublado, desses que só vemos no céu um branco-gelo, semadiscernirmos uma nuvem da outra. Como não era possível ver o sol e saber que altura da manhã era, Jam teve de dirigir-se à sala da televisão, onde havia um relógio.

Era realmente cedo, ainda beirava as sete da manhã. Ainda muito pequeno, Jamursh buscou um banquinho de madeira na cozinha e colocou-o em frente ao aparelho de televisão. Trepou, esticou a mão e apanhou o pequeno relógio em cima do aparelho e demorou apenas dois minutos até vangloriar-se por ter descoberto a hora: eram seis e quinze. Incrível, pensava, como sua habilidade para ver as horas em relógio de ponteiros havia evoluído. Aos cinco anos de idade, bastavam-lhe dois minutos para ter certeza da hora.

Após aquele sorriso interior que todos temos em certas ocasiões, principalmente quando não podemos exteriorizá-lo, como quando vemos alguém cair na rua, Jam subiu no banquinho para largar o relógio em cima do aparelho de televisão.

Uma sensação horrível tomou-lhe por completo. De costas para a porta, Jam sentiu que alguém o observava e, ao largar o relógio, uma barata quase subiu em sua mão. Apenas teve o tempo de tirar seu membro do alcance do abominável inseto e olhar para trás. Durante o movimento da cabeça, como em câmera lenta, Jam sentiu um frio na barriga, desses que os irmãos mais novos sentem ao serem assustados pelos mais velhos quando estes saem gritando debaixo da cama logo após aquele adormecer. Instante de mais profundo mergulho ao desconhecido, mas nem por isso de existência ignorada.

Alain Paul havia acordado e, com um olhar ameaçadoramente acusativo, observava Jam mexendo, parecia, na nova televisão. Pai e barata, dois sustos. Jam olhou Alain da cabeça aos pés, em seu chinelo pantufa e pijama sem bolinhas, cabelos ainda arrepiados e olhos vermelhos e caiu do banquinho, sem, no entanto, machucar-se. Tudo isso em menos de cinco segundos.

Passado o susto e com apenas uma leve dor no cotovelo esquerdo, Jam foi apanhado por seu pai no colo e este logo falou que estavam diante de uma televisão a cores. O menino não conseguia atinar, ainda, do que se tratava. O pai, então, teve de sucumbir-se ao orgulho da compra em relação ao medo de uma iminente perda material e prontificou-se a demonstrar: ligou o aparelho de televisão à tomada, que se encontrava atrás da estante de livros e uísques e toalhas de mesa e, agora, TVs coloridas. Mas ainda era muito cedo, naquela época as parcas emissoras de televisão existentes iniciavam a sua programação, na melhor das hipóteses, às oito da manhã, e os chuviscos do aparelho mantinham-se em preto e branco.

Até então, Jam ainda não havia notado a nova aquisição da família e não estava entendendo muito bem que história era aquela de televisão colorida. Apenas não reconheceu a TV, bem maior do que o aparelho em que assistia, ainda no dia anterior, a seu programa favorito. (A Sapequinha, uma moreninha encantadora de cabelos compridos e lisos, era quem animava os fins de tarde de Jamursh. Contava histórias, ensinava-o de uma forma tão natural e criativa... todavia, havia um sério problema: Jam não sabia qual era a cor dos olhos de sua fada inspiradora, pois na televisão só via nuances intermediários entre o branco e o preto.)

Começava a chover lá fora. Frustrado, Alain Paul largou Jamursh em sua pequena cama, no quarto ainda na penumbra, e contou-lhe a história do tubarão que queria comer um peixinho, depois um peixe, mas no final acabou sendo devorado pelo peixão, sem ter comido ninguém.

Era a trigésima vez em que a história se repetia e, por isso, Jam não demorou muito a pegar no sono novamente. Alain foi deitar-se mais tranqüilo, após ter salvado o novo aparelho de televisão de um possível acidente e, quando encostou a cabeça no travesseiro, Madame Pierina acordou e perguntou o que tinha ocorrido. Após rápidas explicações, o silêncio imperou no apartamento até que todos acordassem novamente.

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