BREVE ANTOLOGIA DO SÊMEN NO CINEMA

(Ou: "FELICIDADE" é só um "QUEM VAI FICAR COM MARY" cult?)

de Tomás Creus

Depois de dois textos, no NÃO passado, em que me perdi para o sentimentalismo barato e a nostalgia, volto a um tema do qual pelo menos entendo um pouco (na verdade não entendo nada, mas, tendo dirigido um curta, pelo menos posso fingir que entendo com certa categoria): cinema.

Como não sou crítico nem pretendo ser, vou me limitar a fazer uma apreciação pessoal de alguns filmes recentes, procurando entender as razões semióticas e pós-modernas por trás da aparição cada vez maior do sêmen no recente cinema mundial. E aviso desde já — desculpem-me os fãs — que vou falar mal tanto de EYES WIDE SHUT como de FELICIDADE.

Comecemos por FELICIDADE, de TODD SOLONDZ. O filme, pode-se dizer, não é ruim. Entretanto, ao sair do cinema, talvez influenciado pela cena final, lembrei de outro recente filme americano: QUEM VAI FICAR COM MARY, dos IRMÃOS FARRELLY. Como todos sabem, o filme dos dois irmãos cara-de-pau foi um dos primeiros filmes "mainstream" a mostrar o sêmen, também conhecido como esperma ou porra, nas telas do cinema. Outras semelhanças: em MARY também há um cachorro, que também lambe o que não devia e é beijado por uma mulher — e cachorro, claro, lembra o filme que é mãe de todos os filmes escatológicos, PINK FLAMINGOS. Mas sigamos.

Não é só por causa do sêmen ou do cachorro que os dois filmes se parecem, mas sim devido a um aspecto mais central: ambos utilizam como personagens principais um bando de "nerds" ou desajustados sociais. Sem dúvida, há diferenças. Em MARY os personagens são totalmente caricatos, até ridículos. Em FELICIDADE eles são mais tridimensionais, e o filme tem o mérito de não ridicularizá-los nem tratá-los com o cinismo costumeiro (mesmo o pedófilo é visto como uma pessoa, hum, "normal"). Entretanto, algumas notas soam falsas: por exemplo, a gorda feia que vira psicopata (não bastava ser gorda e feia?) e a escritora que quer ser estuprada para obter uma emoção nova (a cena em que ela se joga na cama, frustrada por não conseguir escrever "algo real", me pareceu uma das mais falsas da história do cinema, mas talvez seja só impressão minha.) Enfim, senti como se o diretor estivesse querendo forçar a barra para passar a sua "mensagem". E a verdade é que, se os personagens de SOLONDZ não são estereótipos, alguns chegam perigosamente perto (inclusive o solitário masturbador de óculos que trabalha com, quem diria, computação).

Outra coisa: o roteiro era bom, os atores idem, algumas situações criadas muito interessantes, mas eu fiquei pensando o que um cara com um real talento para diálogos, como o Woody Allen, não teria feito. Quer dizer, havia piadas boas, mas também havia algumas falas em que parecia que haveria uma piada, mas esta não acontecia (ou acontecia e eu é que não entendia a graça). Aliás, acho que no filme todo há uma certa indefinição sobre como tratar os personagens, se de modo "humanista" ou "satírico". Afinal, eu devia rir da gorda assassina ou levar a sério o seu patético drama? Como a personagem não me convenceu, acabei não fazendo nem uma coisa nem outra.

Sejamos justos: o filme tem coisas boas, especialmente a personagem Joy, que eu adorei, e a cena dela cantando é ótima. (Por sinal, quando ela sumia eu ficava pensando, "quando ela vai aparecer de novo, hein?") Resumindo: o filme vale a pena, mas não achei aquilo tudo, talvez pela minha alta expectativa (até tinha visto o filme anterior de SOLONDZ, BEM VINDO À CASA DE BONECAS, e achado interessante). Mas, na linha do "vamos mostrar o que está por trás da perfeita sociedade americana através de várias historinhas interligadas", o SHORT CUTS do ALTMAN ainda é bem melhor.

Outro filme que esteve há algum tempo em cartaz e do qual também vou falar (mal) é UM COPO DE CÓLERA, do ALUÍZIO ABRANCHES. Menciono o filme só porque, como nos já comentados FELICIDADE e MARY, aqui também um jato de sêmen cruza a tela, caindo sobre o corpo nu de Julia Lemmertz, numa cena de sexo que só não é gratuita porque deve ter custado uma grana violenta para fazer. Apesar dos elogios de parte da crítica, tampouco me convenci. O filme começa com dez ou vinte minutos de sexo entre dois personagens que não sabemos quem são nem o que fazem. Passa para uma briga sem sentido em que a linguagem barroca de Raduan Nassar soa muito esquisita ao ser falada na tela pelos personagens. Pronto, acabou o filme. O livro pode até ser bom (não li), mas se o filme não se sustenta por si só, não serve. (O diretor disse em entrevistas que pretendia mostrar o conflito entre "os corpos que se entendem e as almas que não." Ainda bem que ele explicou.)

Sobre DE OLHOS BEM FECHADOS, ou, para os puristas, EYES WIDE SHUT, do KUBRICK: é uma pena que ele tenha morrido, porque o seu próximo projeto, uma história futurista sobre inteligência artificial, parecia bem interessante. Sou da opinião que KUBRICK deveria ter feito mais ficção científica, que é o que fecha melhor com o seu estilo grandioso. EYES WIDE SHUT não tem esperma, mas trata de um tema ligado ao erotismo, ainda que frustre quem esperava tórridas cenas de amor entre Kidman e Cruise. Tá certo: o filme tem coisas boas, mas é um pouco arrastado, e não dá para acreditar muito no ciúme do Tom Cruise. A melhor cena, realmente ótima, é a que não se preocupa em denunciar moralismos ou criticar o que quer que seja, mas em apresentar uma cena-limite entre sonho e realidade: me refiro à fantástica orgia dos mascarados (aliás, é impressionante como a atuação de Tom Cruise melhora quando ele está de máscara). A seqüência vale por doze falas da (linda) Kidman comentando sobre as semelhanças entre sonho e realidade. Ah, mas a frase final dela que fecha o filme é ótima, concordo.

Não vi ROMANCE nem OS IDIOTAS — filmes nos quais dezenas de jatos de esperma devem cruzar a tela formando constelações de fazer inveja à Via Láctea — portanto não posso comentar. Mas vi A VIDA SONHADA DOS ANJOS, de ERIC ZONCKA, que não tem sêmen nem é erótico, apesar de algumas cenas boas de sexo. E o escolho como meu filme preferido do mês.

O Gerbase o achou "chato", a Ariela, "denso e pesadão" (!?!?). Mas A VIDA SONHADA é um filme que, na sua simplicidade, consegue muito mais do que outros que pretendem denunciar "a hipocrisia da moralidade americana" ou "a sordidez da vida suburbana", ou o que diabos for. A VIDA SONHADA DOS ANJOS não tenta mostrar "a busca da felicidade", nem "a luta entre corpo e alma", nem mesmo "o drama do desemprego entre os jovens", nem (literalmente) porra nenhuma. E no entanto transborda de espontaneidade, as duas atrizes são ótimas, e ZONCKA consegue o que nem SOLONDZ nem KUBRICK nem ABRANCHES mostram em seus filmes: personagens que parecem pessoas reais, como eu ou você (bem, talvez não como você, e muito menos como eu, mas enfim: pessoas reais). Como bem diz Marcelo Coelho em seu artigo na Folha de 1/9, o filme é mais "verdadeiro" do que os do Dogma-95, que pretendem mostrar a "verdade." Afinal, todos sabemos, a verdade não passa de uma ilusão.

É claro que eu, todos também sabemos, não sou crítico de cinema nem pretendo ser.