Entre brumas e chips
 
de Miguel da Costa Franco
 
 
Para Rita Lins, o amor ainda não havia perdido seus encantos. Sabia, como poucos, antecipá-lo ardente no par de olhos de um passante ou na delicadeza de cálices que brindam ou, até mesmo, no capricho da caligrafia bordada a custo num bilhete amarfanhado.

Tinha do amor, conceitualmente, ainda um travo juvenil. Sonhava com príncipes heróicos, ainda que os condecorasse com brincos nos mamilos, ferreiras gullares nas estantes e cocaína nas algibeiras. Apaixonava-se fácil. E seu amor vasava em abundância pelas fendas de seus lábios, pelo matraquear de seus dedos no teclado, pelo calor umedecido de suas entranhas.

Arriscava-se, com frequência, minha Rita Lins. Atirava-se ao vazio, mariposa de circo, sem imaginar que as redes da paixão se descosem com o tempo, que as hastes do trapézio se desgastam pelo uso, que também se apaga a luz estridente dos holofotes.

Trocava o dia pela noite, a água pelo vinho, a solidão por qualquer coisa menos vã. Precisava viver intensamente e assim construiria até mesmo o suicídio.

Vestira suas melhores roupas velhas para passear no brique, aquela Rita Lins, que vertia em poemas vigorosos sua fragilidade lacrimosa. E encontrou-me entre os "vinis" à venda, pensando ter visto ali sua alma-irmã.

Resgatou-me dentre os discos expostos e sorveu minhas canções melosas, com sofreguidão, como se cada verso fosse um afago mormacento em seu colo amoroso e solitário. Ansiou por cochichos assoprados na pele suave de seu pescoço, ansiou por minha língua úmida em seus mamilos pontiagudos, por dedos ousados em seus pentelhos fartos. Ansiava por mim e eu nem sabia.

Transformou-me em sonho, essa Rita Lins.De meu lado, sabedor de minhas virtudes escassas e de como encaro, altivo, a minha própria solidão, e incrédulo, o apaixonar-me outra vez, Rita Lins provocou-me um tiquinho de pena. Não por ela e seu jeito de ser, é claro. Mas por imaginar-me assim tão, tão...

Poderíamos passar bons momentos, minha Rita Lins e eu? Esvair-nos em sensações, odores,vertigens? Brincarmos com nossos corpos como ursinhos de pelúcia? Escalar-mo-nos como aranhas famintas? Perpetuar-mo-nos em nós mesmos, sem as máscaras tolas e diáfanas da vidinha cotidiana? Exigirmos de nós apenas a emoção do instante, manter-mo-nos e-mails deletáveis, sermos fragmentos de luz, faísca, soluço, orgasmo, arroto, polução?

Gostaria de tê-la visto, pela primeira vez, numa manhã de cerração, isolados em brumas e umidade, nós e a nossa imensa solidão.

Começando lá do zero, da amplidão do nada, até a luz do sol dissipar aos poucos a névoa acinzentada.Queria vê-la brotar aos poucos dentre os raios luminosos, filtrados em filamentos consentidos pelos galhos dos ciprestes, com seu cheiro quase único, que imagino agridoce como o da terra recém molhada.

Mas não. Desapareceu por semanas, foi buscar outro amor em São Paulo. Em suas próprias palavras, foi trepar com a mesmice até o cheiro de borracha das camisinhas muito usadas inundar o quarto.

Quando voltou, nos perdemos pelos cabos telefônicos, extraviamos nossos destinos entre chips mal soldados.

Edipiano da era do computador, abandonei seu amor virtual e morri abraçado com a minha placa-mãe.