ESPERANÇA

de Eduardo

Meu nome é Eduardo, sou publicitário e sempre morei no Rio Grande do Sul. Sempre fui o que se podia chamar de típico otimista. Olhava os problemas de nosso país e estado e os relacionava a nossa pouca idade: menos de quinhentos anos. Chegava a discutir com amigos e familiares sobre nosso lindo futuro. Ficava triste ao ler nos meios de comunicação a respeito das injustiças que nosso povo sofre, mas sempre chegava à conclusão de que estas nos levariam ao crescimento. Crescimento através da dor, do sofrimento, do aprendizado com a injustiça e, com isso, a conseqüente criação de uma consciência cada vez mais ativa nas decisões e reivindicações de nosso povo. E assim, mudanças.

No último dia sete de setembro, os porto-alegrenses e gaúchos tiveram a chance de cantar o hino nacional no Estádio Beira-Rio, ao mesmo tempo em que veriam uma apresentação histórica da seleção brasileira contra a equipe argentina, num dos maiores clássicos futebolísticos deste mundo. Poucas vezes o circo foi tão generoso com nosso estado, principalmente em tempos de pouco pão.

Com a devida antecedência, comprei meu ingresso, pois não concebia nem de longe a idéia de perder um espetáculo com tantas estrelas. Contatei amigos, a fim de congregar gente torcedora de diferentes times no grito por uma mesma causa, mesmo que esta fosse apenas um jogo de futebol. Apesar de ser feriado, consegui trocar meu turno em minha empresa e trabalhei pela manhã. Liguei para meu pai, dizendo que finalmente veria um belo jogo da seleção brasileira, ressaltando minha certeza de uma bela vitória, de um belo espetáculo.

Mesmo que se tratasse de um jogo de futebol, estava entusiasmado.Eu e dois amigos, então, chegamos ao Beira-Rio e apavoramo-nos com as filas, mesmo que ainda tivéssemos duas horas antes de o jogo começar para nos acomodarmos. Ouvi um pai dizer ao filho que um dia ele contaria para seus netos a história desse jogo. Na subida da rampa 3, no entanto, após uma hora e não mais do que dez passos avante, nossa preocupação aumentava a cada minuto, mas pelo menos em mim persistia a esperança de que, mesmo em pé atrás de uma goleira, assistiríamos a este espetáculo. Era inconcebível a idéia de o perdermos.

Quatro e pouco da tarde, ouvimos os foguetes e os gritos da torcida ao entrar em campo nossa seleção. Mais alguns minutos, e ouvia no rádio de um torcedor próximo a linda capela da Hard Working Band, cantando o hino nacional. Frustração, início de desesperança.Mais alguns minutos, a torcida já gritava o "uuuhhh" de um quase gol. As pessoas desciam a rampa dizendo que não dava mais para entrar, e só após algum tempo é que tomamos a mesma decisão.

Vinte minutos do primeiro tempo, ainda zero a zero, passamos pelos portões da arquibancada inferior, ainda com esperança, até chegarmos ao portão de entrada da coréia. Já na fila, com um ingresso na mão, cheguei à conclusão de que não era isso o que merecíamos. No táxi que pegamos até minha casa, inconformados, voltávamos silenciosos. Não bastasse a incredulidade de não ter podido entrar no estádio, ainda tivemos que nos segurar ante as arriscadíssimas manobras do motorista. Compramos algumas latas de cerveja e subimos, calados, até meu apartamento para assistir ao jogo pela televisão.

Gol do Brasil, Rivaldo. Rivaldo! Rivaldo! Ronaldo! Um sentimento de frustração que jamais esquecerei. Uma festa em que fomos barrados, um direito que nos foi tirado. Um sentimento que não tem volta. Mesmo ocasionado por um jogo de futebol.

Nosso dinheiro seria devolvido, sim. E tudo ficaria por isso mesmo. Como sempre. Não havia pai, não havia mãe, não havia justiça. Não há país. Respirava fundo até ser confortado por uma amiga que me dizia que eu estava vivo e com saúde. Mais calmo, lembrei-me das chacinas causadas por PMs, das queimadas dos fazendeiros,dos assassinatos políticos, dos pistoleiros, do entreguismo, da alta do dólar, das famílias que vivem sem esgoto e vêem seus dejetos passando em frente às portas de seus barracos alagados, dos hospitais lotados, do prédio que caiu, da criança ainda inocente que me pede um trocado na esquina. Vi a indigente seminua com uma vassoura na mão, ouvi um taxista buzinar para o carro que havia parado ante à faixa de segurança, senti o mau cheiro do nosso Guaíba. E vi que meu problema não existia. Tenho uma vida pela frente, tive a sorte de poder estudar e tenho potencialmente o futuro em minhas mãos. E só agora, quando fui irreversivelmente lesado, é que tornei-me um incrédulo em relação a nosso país. Talvez meus netos não o sejam, mas eu sei que não verei uma pátria que me respeite.Fiquei sabendo que posso trocar o ingresso por uma entrada no Gre-nal. Que ótimo, que beleza! Que linda é a Federação Gaúcha de Futebol! Não! Não quero entrar no clássico, não quero meu dinheiro de volta! Não acredito em justiça! Após ver crianças chorando no colo de seus pais enquanto desciam a rampa, tudo o que querem nos devolver são quinze reais?!

Explodam-se, gananciosos, fiquem com meu dinheiro!

Foi apenas um jogo de futebol. Um jogo de futebol que mudou toda minha visão sobre o futuro desse país. Quero sair daqui, quero ser respeitado. Para quem lê tudo isso pode ser exagero, pois trata-se apenas de um jogo de futebol. E meu troféu, que sempre me acompanhará, será o ingresso que guardarei em minha carteira, para nunca mais esquecer do dia em que fui batizado, finalmente, brasileiro. Finalmente, sou um desassistido.