Homo Bacus – o making of

de Ariela Boaventura

E Deus criou o mundo, e as estrelas e a luz, e sentiu-se muito bem. Do alto de sua imponência, lá em cima, onde todos dizem que Ele mora, e mesmo diante de tanta satisfação, em tom estéreo e rodeado por uma áureoluz cor de leite, o Todo-Poderouso disse:

Ora, bolas, mas de que adianta tanta beleza e opulência se ninguém há para usufruir de minha criação?

E o artista sentou-se diante de sua prancheta e pensou. Enquanto gastava seus poderosos e sagrados neurônios, Deus teve fome. Resolveu parar o trabalho e ir jantar, afinal, há seis dias e meio estava sem comer: ansiedade.

Refestelou-se em um prato frugal composto de vegetais nobres, como o brócolis à Celestial, suflê de espinafre com ervas finas, mais um pato com laranja especialmente assado para a ocasião, temperado com alecrim. Para saborear ad perfectum, um cálice de vinho branco, um Barollo safra 340 a .C.

E eis que, rodeado por anjos da mais alta casta celeste, todos louros e olhos cor de água-marinha, vestidos com o mais puro linho já tecido, Ele arrotou.

Um breve, discreto e inocente blurp! Os anjos do primeiro escalão fingiram nada notar. Prosseguiram em seus sussurros, pequenos olhares entre o vácuo e o próprio espírito do nada. Paz, isso não pode ser perturbado por um simples arroto, ainda mais vindo das vísceras do Divino.Mas Ele irritou-se. Os seres humanos ignoram a verdadeira ira divina. Ele é.

E como tudo o que é, é em seu todo, o Todo-Poderoso. O que engloba toda espécie de sentimento, idéia, imagem, pensamento, ou até mesmo não-pensamentos, não-sentimentos, não-idéias, coisas inanimadas e inimagináveis. Até porque Ele é o dono do verbo e os seres não podem conceber o que não podem nomear. Silêncio infinitamente pesado se instala diante da ceia. Nem as melodias harpais tocadas com constância pelos seus querubins se ouve. A força da vontade d'Ele se faz nesta espécie de boicote a tudo que se manifesta, e isso sempre ocorre quando algo vai mudar, acontecer.

Os anjos, como se sabe, adoram a sua rotina e a boa-vida da função. No Céu, atualmente, ouve-se à boca pequena rumores da existência de um movimento de resistência a mudanças. A eternidade deve ser permanente, postula o líder rebelde. Foi afastado do primeiro escalão e posto a lavar pratos. De fato, o reino dos céus também tem suas ninharias.

Em pós ao pesado hiato, cuja duração seria ininteligível ao neurônio humano, pois nos céus não há convenções mesquinhas, Deus decidiu abrir sua sagrada boca. Não para arrotar novamente, mas para dizer aos convivas e afins com toda a autoridade do Verbo:

Sexo.

Os anjos não entenderam, mas intuíram que algo muito grave estava a ejambrar-se dentro daquela mente poderosa, ubíqua, onipresente, onipotente e outros que tais. Ele repetiu, em voz mais grave, olhos brilhantes, flamejando força criativa:

Sexo.

Não disse mais nada, para desespero da comunidade divinal. Levantou-se da mesa, levando consigo, naturalmente, o vinho, e seguiu para seus santos aposentos. Pegou seu arsenal de cores, na gaveta da escrivaninha sagrada, e rabiscou um croqui. Sim! Era isso! Um ser. Um ser dotado de poderes fecundos, que pudesse dar continuidade a seu mundo. Matutou por instantes, olhou para o papiro, apagou um traço aqui outro acolá, até que a forma foi se transformando, pouco a pouco, na sua mais sublime e complexa obra.

Perfeita!, disse, com seus abençoados botões. Ficou tão emocionado que bebeu outra garrafa de vinho. Poço de determinação, Deus não quis dormir: emendou a pândega com o que seria a finalização de seu trabalho. Pois para que sua primorosa obra funcionasse de modo perfeito e completo, faltava algo a Ela, a primeira mulher, produto do capricho divino.

No sétimo dia, então, ressaqueado, prosseguia engalfinhado ao papiro, consumindo em parte o restante do trabalho. Mas estava o Todo-Poderoso muito cansado devido à etílica noite anterior, e foi sentindo as pestanas pesarem-lhe sobre os bem-aventurados olhos. Dormiu.

Talvez seja por haver sucumbido a este sono dionisíaco é que dizem que Deus descansou no sétimo dia. E, quem sabe, por ser concebido sob a inspiração de Baco é que o homem saiu este animal simples, prático, quiçá enxuto de maneiras e frescuras, seguidor do instinto e amante da obra-prima universal: a mulher.