Olhos de Felina

de Maria Luiza Madureira

Fecho os olhos e continuo vendo a cena: o gato no sofá, estendido, pose de dono-da-casa, insolente, os olhos de vidro brilhando parecem compreender o que vêem. Cansaço. Preferia não precisar mais mover minhas pálpebras, deixá-las descansadas repousando sobre a almofada de pele e cílios na parte inferior dos olhos. Meus olhos de felina. Parecem tão sábios quanto os do gato. O brilho não se apaga jamais, eu sei, olhos bonitos, os meus. Boca bonita, também, nem tão fina, nem tão grossa, lábios bem desenhados, sensual. O nariz imperativo, as bochechas rosadas, a pele branca. Fico visualizando a imagem de meu rosto, vou tocando suavemente cada parte, nariz, boca, olhos, testa, e minhas mãos se enredam nos cabelos, se perdem pela infinidade de fios suaves, macios e louros separados em feixes de cachos perfeitos. Sou bonita.

Difícil manter os olhos fechados, mesmo que esta seja minha vontade. A luminosidade que entra pela janela agride minhas pupilas, ultrapassando a cortina de pele que as protege. Estou pensando em uma maneira de sobreviver a mais um dia de sol, esse ventinho leve que move as folhas que enxergo pela janela, esse canto atormentador dos pássaros lá fora. Quero que a noite chegue e a calma que só ela me proporciona.

Abro os olhos num repente, quero me olhar no espelho, fechar a persiana, dar um jeito nesse cabelo, comer, ih, tanta coisa. Quero sair desse apartamento, deixar de beber e passear no parque, me encantar com as crianças brincando na pracinha e fazer planos. Filhos, casamento, tapetes, enxoval, um montão de planos. Quero um homem culto e sensível, maduro e carente. Uma definição. Um porquê. Quero... ah, nem sei mais direito o que eu quero. Ele não me liga mais, não aparece, será que esqueceu? Bonito isso. Algum tempo de romance, nos amamos noites e dias e manhãs e tardes e, de repente, é como se nada tivesse acontecido.

Desde que Ele desapareceu, não saí mais de casa. Não fui mais à ginástica. Não fiz mais as unhas. Não consegui mais lembrar dos meus sonhos. Não botei mais batom. Deixei a secretária eletrônica ligada, decidi só atender quando Ele ligasse. Só atendia à porta por uma questão de segurança, poderia ser alguma emergência. Só comia por uma questão de sobrevivência, se bem que várias vezes pensei que talvez sobreviver fosse pouco, não me bastasse. Mas não tenho coragem nem para isso. Até para isso sou fraca. Covarde. Por que não telefono? Medo. Por que não saio à Sua procura? Falta de coragem. Medo de ouvir não. De me expor. Também, desde que O conheci, esqueci de tudo o que vivi antes. Esqueci de tudo o que achava que gostava, tudo o que fazia. Ele vinha com seu jeito meigo, ao mesmo tempo autoritário, me dizia "vamos para a praia, quero brincar um pouco com você" e eu fingia ser uma menininha, dava a mão e íamos, feito dois moleques, brincar na areia, conversar até altas horas da madrugada, observando os caranguejos cavarem seus buracos e apostando até que ponto da areia o mar avançaria. Ele me contava histórias que eu ouvia até que meus olhos não agüentassem mais e se fechassem, e então ouvia-O dizer: "esses seus olhos de felina, qualquer dia desses seu gato se apaixona por você." Eu sorria, quase dormindo, e Ele beijava minha testa e eu não via mais nada.

Foram meses sem pensar muito no que seria de nós dois, nesse ócio enlouquecido que é estar apaixonado. Hoje me dou conta de que não sabia nada a seu respeito. Nem ele de mim. Nosso amor aconteceu sem referências, sem amigos em comum, sem afinidades. Nosso amor se encerrava em si mesmo. Era. Sem porquês, nem definições ou planos. Sem passado nem futuro. O presente era bom e, enquanto nossos olhos continuassem procurando a boca um do outro, seríamos felizes. E os olhos sempre procuravam os olhos, que procuravam a boca, e uma boca procurava a outra, e uma mão procurava a outra, e as duas mãos procuravam o corpo, e os dois corpos então se encontravam, fundiam-se, dividiam-se e uniam-se novamente. Nessa procura esquecemos de combinar o que seria de depois. Aliás, não combinamos nada. Não questionamos. Apenas aceitamos. Agora, então, deveria eu aceitar naturalmente? Esquecer, simplesmente?

Vou fechar a janela, tomar mais um copo de vinho e continuar esperando. A qualquer hora Ele pode voltar, a qualquer momento eu sei que Ele vai voltar. Sirvo o vinho e derramo um pouquinho do lado de fora da taça, rapidamente lambo o cristal para não deixar a bebida escorrer e então sorvo o líquido suavemente, vou sentindo a boca se contraindo, se repuxando ao sabor da amargura do vinho. Humm, logo, logo vai anoitecer. Hoje vou dormir e sonhar, faz tempo que não lembro dos meus sonhos, por que será? Faço um carinho no gato e fico olhando para ele como que esperando uma resposta. Me contento com seu olhar de vidro e fico pensando, talvez meu gatinho esteja apaixonado por mim, pelos meus olhos de felina. Quase rio, mas então me lembro dEle. À noite parece que tudo fica mais calmo. Minha angústia diminui. Não sinto que o resto do mundo continua enquanto espero. Abraço meu gatinho e fico rezando por um sonho bom, estou quase dormindo e ouço o blen-blen da campainha. Fico nervosa. Atendo? Prefiro não pensar que Ele está de volta, deve ser o zelador, já vou!

Abro a porta e não sei se fico feliz ou triste. "Você já se olhou no espelho?", ouço Ele dizer enquanto me abraça, alisa minha cabeça e vai entrando. Meu deus, finalmente, por onde você andou? "Você está bem? Parece tão abatida... há quanto tempo não sai de casa?" Eu digo que ando meio deprimida, ele levanta meu queixo com a mão, suspira e seus olhos encontram os meus. "Esses olhos de felina...! Menina, como você está abatida, andou chorando? Afinal, o que houve?"

Eu é que pergunto o que houve! Mas não digo nada, nossos olhos já se encontraram. Baixo a cabeça, uma vertigem de repente. Ele está assustado. "Você está muito diferente, não faça assim, mocinha, me conte o que há!" Mas não há nada. Já passou, eu murmuro. Ele sorri, penso em pedir que nunca mais vá embora, não suma desse jeito, mas isso seria fazer planos. Nosso amor não tem disso. Nem planos, nem definições. Nos submetemos, e pronto. Não temos outra opção. O que nos resta é aceitar. É o que nos resta, por que demorei tanto para entender? E os olhos dEle procuram minha boca, os meus a dEle, nossas bocas se encontram, nossas mãos, nossos corpos. E meu gatinho passeia, cabisbaixo, pela sala, os olhos de vidro nos observando e, agora tenho certeza, compreendendo o que se passa. Miando e nos observando.