AVRÍVLAS BOLKROVÖTSKA DJÜD

por Clarah Averbuck

 

Não podia ser verdade. Não podia estar acontecendo de novo. Se olhava no espelho do banheiro, sem acreditar. Era ridículo demais. Não era o tipo de coisa que acontecia com adultos. Não, não era. Mas ele era um adulto, e estava acontecendo. Não via seu tórax. Sentia, estava tudo ali, mas não conseguia ver.

Era pequeno da primeira vez que aconteceu. Odiava fígado. Seu estômago se revoltava quando imaginava aquela carne pastosa sendo digerida. Sentia engulhos cada vez que o cheiro forte adentrava suas narinas, e mesmo assim sua mãe insistia em cozinhar aquela gororoba ao menos uma vez por semana, dizendo que era muito importante para seu crescimento. Pedro Ivo sempre dava um jeito de ludibriar a mãe, fosse sentando à frente da televisão e dando os fígados discretamente para Rufus, seu cão, fosse fingindo que se servia da odiosa carne enquanto atrolhava o prato com batatas, fosse jogando toda a golesma pela janela do apartamento. O fato é que nunca comia. Nunquinha. Até o almoço na casa da tia Paca. Um grande almoço, com todas aquelas tias e primas que ele nunca conseguiu decorar o nome; eram todas parecidas, loiras e tagarelas, e não cansavam de apertar suas bochechas e exaltar sua capacidade de crescer mais e mais a cada ano. O que esperavam? Que ele fosse um pigmeu e permanecesse com um metro e meio pra sempre? Gente chata. E como falavam alto! E riam alto! E eram altas! Impressionante como uma família podia ser tão grande e ter tão poucos homens. Talvez por isso a mulherada gastasse seu tempo cozinhando e falando bobagem. Muita bobagem. E arrumando mesas cheias de flores e badulaques inúteis. Com um lugarzinho mega-especial para o prato principal, que era, naquele dia... fígado. Fí-ga-do. Sentiu o clássico frio na barriga quando a cobrinha de fumaça deslizou pra dentro de seu nariz. Ouviu a mãe ou a tia ou a prima ou a outra prima chamando pra almoçar. Pensou seriamente em fugir pro Alaska, correndo e gritando. Será que tinha fígado no Alaska? Fugir. Fugir! Tudo menos fígado! Como iria se livrar da geleca? Sentou-se na mesa, tentando arquitetar um plano de última hora. Se sentia minúsculo, entre todas aquelas mulheres que agora pareciam gigantescas, descomunais, deformadas. Estava tonto. As risadas ecoavam em sua cabeça, o cheiro ecoava em seu estômago, o cachorro latia e as flores da mesa faziam seu nariz coçar. - Querido, dê cá seu pratinho - disse tia Paca, aquela gorda que usava colares exagerados e o pior perfume do velho oeste - titia fez fígado especialmente pra você. E ele deu. Deu o prato. Com vontade de gritar que odiava fígado e as flores e a tia e as primas e que aquele perfume era nojento e que ele só queria brócolis. Mas não disse nada. Ficou quieto. E comeu. Comeu tudo, enquanto o mulherio achava uma gracinha. Se sentia vomitando pra dentro. Quis gritar, não gritou. Apenas comeu.

Quando passou pelo espelho da sala, levou um susto: seu pescoço não estava mais lá. É. Seu pescoço havia sumido. Apavorado, apalpou os ombros, a face, a nuca. Estavam lá, podia senti-los, mas não os via no espelho. Achou melhor ir brincar com seus Comandos em Ação e esquecer. Pescoços não desaparecem, logo, devia ser defeito no espelho.

- Tudo bem, Pedro? - disse Diana, do lado de fora do banheiro Continuava catatônico, apalpando-se e tentando entender. Na verdade, já havia entendido, só não queria aceitar. Tudo bem, até que era plausível achar que partes do corpo sumiam cada vez que não as usava como queria aos dez, onze anos. Mas agora tinha vinte e sete e essas coisas tinham parado de acontecer. Ah, tudo bem o catzo. Por causa disso, foi obrigado a freqüentar aquela psicóloga múmia durante anos - o que causara grandes crises, pois cada vez que saía do consultório convencido de que partes do corpo não sumiam e se olhava no reflexo da porta, não via a própria cabeça -, sem contar os olhares de pena dirigidos pela mãe e resto da família, como se ele fosse um manco. Anos agüentando esse inferno, pra isso? Não. Inâf. É. Na verdade, era tudo psicológico. Nada que uma agüinha gelada no rosto não resolvesse. Chuá. Agüinha gelada no rosto. Se olhou no espelho. Tudo na mesma. Pedro Ivo suspirou, deu dois tapinhas nas bochechas, tap-tap, é isso aí, e saiu do banheiro. Na sala, Diana esperava sentada na mesa, com seu melhor sorrisinho de primeiro encontro. Sobre a mesa, um prato transparente fumegava, espalhando uma nuvem de fígado pelo ar.

 

Clarah Averbuck
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