O SILÊNCIO DOS SOBREVIVENTES

por J. Olímpio

 

O País atravessa o mais insólito dos seus tempos. Às portas de seus 500 anos, a serem comemorados em inexplicável pompa destarte a circunstância, somos o insólito produto de sucessivas colonizações radicais contrapostas por resquícios de patriotismos incipientes.

Pra não fugir ao espírito de 68 (tema deste NÃO), evoquemos aquele cultuado ano e mergulhemos no que de melhor restou dele: seus sobreviventes.

Talvez até seja espantoso constatar, mesmo que previsivelmente, que nossos ídolos (já cinqüentões ou mais) tiveram sua ascensão naquela fervura militarista, quando qualquer referência à Pátria podia significar cadeia, tortura e morte; se não constasse na cartilha dos direitaços. Daí que, imbuídos de brasilidade, nossos poetas, cantores e dramaturgos e cineastas gastaram seus dotes numa mensagem única: resgatar a dignidade popular.

Ah, ingênuas criaturas...! Para quem, mesmo que perseguidas e violentadas, a palavra era sagrada e a honradez um compromisso. Até os vira-casacas, os calabares de plantão, traíam conscientemente.

Mas o tempo trouxe novidades que transcenderam ao progresso tecnológico, ultrapassaram os padrões sociológicos e morais, deixaram longe os códigos de ética...

O discurso das elites tomou ares esoterizados, ao denotar supostas reformas econômicas. O capital foi socializado numa proporção avessa à matemática da sociedade: 70% para uns poucos, migalhas para quase todos. As guerras saíram para novos campos de batalha, reformuladas em manipulações devastadoras dos recursos e da informação, configuradas em garrotes financeiros insuportáveis, vigiadas pela TV ao vivo.

A independência das nações, relativizada por suas dívidas astronômicas, cada vez mais padece de significado e realidade. A miséria atingiu estágios alarmantes, catando as migalhas da tecnologia que serve os poderosos.

O conceito de aldeia global cedeu lugar à fadiga da informação, à saturação do lixo pseudo-jornalístico, à virtualização da realidade.

O alegado anacronismo dos valores reduziu a um limite básico a solidariedade e a organização popular, que só encontram eco nas chamadas "classes inferiores".

Sob a forma de escândalos, anestesia-se a Nação hipnotizada por roedores televisivos, nádegas quase cantantes, pastores do demo e gralhas travestidas de caubóis. A cada mídia-mania em rede nacional, correspondem uma ou mais medidas nada-provisórias, em favor dos que já possuem muito mais do que merecem.

Rarefaz-se o poder aquisitivo, viceja o potencial da concentração de renda.

Mata-se no atacado e no varejo, à vista (da Lei) e no crediário do SUS. Morre-se de hepatite e de vergonha. Cala-se o cidadão, à base de Coca-Cola e de cocaína...

Talvez a grande herança de 1968, para nós que éramos tão idealistas, seja justamente essa indignação teimosa, esse jeito de lembrar de um Brasil sonhado, tentado e ainda NÃO-feito por seu povo.

O mesmo povo que, 500 anos depois, só pode comemorar sua sobrevivência.

 

José Olímpio
jolimpio@osaldaterra.com.br