VERGONHA DA ORDEM DO SINO
Luís Augusto Fischer 24/02/2000 - 00:05
 
 

Nas comemorações do centenário da Faculdade de Direito da UFRGS, veio à tona uma baixaria que não tem tamanho, e eu certamente não vou conseguir manifestar em palavras a indignação que me move a escrever essa nota. O que era pra ser, com toda a justiça, a celebração de uma instituição que está na raiz da história sul-rio-grandense, correu o risco de virar uma patacoada.

Não por culpa do atual diretor, Eduardo Carrion, que fez o melhor que se poderia esperar e administra a faculdade como deve; não por causa da reitora, ou de algum professor, ou dos alunos. Mas por causa de ilustres ex-alunos, mais precisamente um grupo que vem de se intitular Ordem do Sino. Para cúmulo de todos os pecados, a Ordem é integrada por ninguém menos que um ex-Ministro da Justiça e atual Ministro do Supremo, Nelson Jobim, além de outros que não vêm ao caso (ou talvez venha ao caso mencionar o advogado e escritor Paulo Waimberg, que cometeu uma enormidade ao publicar artigo na Zero Hora em favor da Ordem do Sino e de sua atrocidade histórica).

A tal Ordem, parece, nasceu em 1968, quando certa turma se formava na centenária faculdade. Algum aluno, por brincadeira, resolveu furtar o badalo do sino com que se anunciavam os começos e fins de aula; depois, resolveu ou resolveram roubar o sino todo. Até aí estamos no terreno da molecagem juvenil, sem maior gravidade.

Mas o caso é que agora, na preparação do centenário, foi-se atrás do tal sino, afinal símbolo, para o bem ou para o mal, de toda uma época da faculdade, da vida cotidiana das centenas de alunos que alguma vez o ouviram e por cujo badalo regularam a vida acadêmica. Descobriu-se que estava em poder da tal turma, integrada pelo vergonhoso ministro do Supremo - e vamos sublinhar, não se trata de um advogado de porta de cadeia, nem de um rábula qualquer, mas de um ministro da mais alta corte do país, da república. Descobriu-se mas não resultou disso que os ladrões ou cúmplices devolvessem o sino. Não devolveriam, nem que todo rebanho vacum do estado tussisse simultaneamente. E mais se esclareceu: que o sino só será devolvido quando o último sobrevivente da tal Ordem estiver prestes a comer capim pela raiz.

Que um débil mental qualquer tivesse roubado o sino, tudo bem, pecadilho do verdor dos anos; que um ministro do Supremo, adulto e supostamente em plena posso de suas faculdades mentais, cooneste o roubo, é o fim da picada. (E o escritor Paulo Waimberg, talvez falando em nome da maldita Ordem, assinou o seguinte, em artigo para a Zero Hora: "Por que não devolvemos o sino? Ora, ele se tornou o símbolo de nossa turma." Quer dizer que se eu, por exemplo, achar que posso levar pra casa, digamos, um microfone da Assembléia Legislativa, como símbolo sei lá de quê, tudo bem?)

Um leitor estritamente positivo poderá argumentar, contra a minha fúria, que se trata de um reles sino, e que portanto nada há para tanta bronca. E poderia ir mais além: que está tudo bem porque o atual diretor da faculdade teve a felicidade de desencavar um velho sino, anterior no tempo ao sino roubado, que estava jogado em sabe-se lá qual porão da faculdade, restaurá-lo e assim, simbolicamente, reatar um fio, um pequeno e quase irrelevante fio da história da instituição.

O problema, claro, não é o tamanho do roubo. É que se trata, pura e simplesmente, de um roubo. Ou melhor, não se trata pura e simplesmente de um roubo, mas do roubo de um bem público. E quem o roubou não foi um zé das couves, uma maria madalena dos anzóis pereira, mas de advogados, e mais ainda, de figuras gradas, e mais ainda, de um atual ministro do Supremo Tribunal, Nelson Jobim. Este cidadão, por sinal, confessou em público, e sem corar, ter em seu poder, na altura de 1998, o sino surrupiado.

É de estarrecer, e não é de estarrecer. O desprezo com que esta tal Ordem trata a faculdade, a universidade, um centenário numa terra jovem como a nossa e, enfim, as coisas públicas, é de arrepiar a alma de gente de bem; mas como se trata de gente fina, de pró-homens da República, não é de espantar. As elites brasileiras viveram e vivem fazendo isso. Reclamamos nós, os sul-rio-grandenses, que certa elite nordestina ou nortista se apropria de dinheiro público? E por que toleramos esses ladrões ou cúmplices locais? E por que passamos a mão na cabeça dessa gente? O Ministério Público não deveria acionar pelo menos o ministro do Supremo? E este, por sua vez, acaso não deveria ter um pingo de dignidade e denunciar o acordo juvenil em que se louva para manter o sigilo do paradeiro do sino, ou a posse do sino?

Que mistério patético e vil é esse que faz gente como o ministro Nelson Jobim calar diante do roubo? Que acordo fizeram na altura de sua juventude que o impede de vir à boca da cena, contrito, e devolver o sino, com o correspondente pedido de perdão? O mesmo Waimberg diz, no já citado artigo: "(...) Devolvê-lo seria trair um ideal abstrato que se cristalizou na solidez do afeto, da compreensão e da admiração mútua". Não é lindo e tocante? Eu pergunto: se eu levar pra casa, digamos, o elevador do Palácio Piratini, sem problema, desde que haja afeto entre mim e os outros ladrões ou cúmplices? E se os usineiros de certa praça nordestina levarem pra casa uns quantos milhões de dólares, coisa pouca e afetuosa, tudo bem também? Qual a diferença de fundo entre uma coisa e outra, afanar um pequeno bem público e afanar um grande bem público?

Sejamos mais modestos: digamos que o valor comercial do sino roubado orçe pelos 200 pila. Bem. Então, seguindo o bom princípio republicano da igualdade, vamos estabelecer que roubos de bens públicos até 200 reais serão tolerados. Os alunos da faculdade de Direito da UFRGS e, por extensão natural, todos os alunos de qualquer faculdade da UFRGS, passarão a dispor da possibilidade de roubar bens de até 200 reais, a cada ano, na ocasião da respectiva formatura, a cada turma que tenha afeto, compreensão e admiração mútua, no presente ou no futuro. Quem sabe a legislação se sofistica e passamos a administrar a coisa da seguinte forma: se o afeto, a compreensão e a admiração mútua forem muito, mas muito grandes, abre-se um novo patamar, e o roubo será tolerado até, digamos, 300 reais. Em casos ainda mais excepcionais de afeto, compreensão e admiração mútua, ou em casos em que um integrante da turma venha a ocupar a assim chamada Magistratura Superior da Nação, pode-se negociar; quem sabe a turma pode levar, por exemplo, o carro da reitora.

Ou outra hipótese, que me ocorre de improviso: digamos que a Ordem do Sino, que se compõe de juristas e de pelo menos um ex-Ministro da Justiça e atual Ministro da mais alta corte do país, o tribunal a que se recorre em última instância, antes de Deus, argumente que não é bem assim, porque se trata de gente especial, com curso superior, e, não bastando, curso de Direito; que todos os integrantes da Ordem têm boa família, emprego regular e residência fixa; e que, portanto, não é qualquer formando que pode roubar 200 reais. Por exemplo: quem se forma em Letras, como é o meu caso, é naturalmente de casta inferior, e portanto só tem direito a um roubo de 87 reais. Ou então pensemos na generalidade da população, segundo o mesmo sistema de castas, que de resto está aí mesmo no país, desde 500 anos: bagaceiro que freqüenta posto do INAMPS, sem curso superior, só pode roubar bens até a quantia de 17 reais e 34 centavos. Uma resma de folha de papel ofício, duas canetas e um atilho de borracha, e nada mais.

Essa gente ainda se louva num aspecto secundário do pacto juvenil: que o sino será devolvido, e que portanto tudo estará bem logo em seguida. (Vamos calcular por hipótese: o último representante dessa triste estirpe de pequenos ladrões vai morrer aos 80 anos; então, tendo eles se formado na altura de seus 20 e pouquinhos anos em 1968, temos que o derradeiro ladrãozinho morrerá aí por 2026, digamos. Que tenham vida longa.) Derivando do mesmo saudável princípio republicano da igualdade presumida, base de qualquer sistema legal no mundo ocidental moderno, então o Badan Palhares, médico formado, pode levar pra casa um microscópio da universidade em que trabalha, bastando demonstrar firme disposição de devolvê-lo ali por 2012. (Detalhe, para quem não lembra: um dos crimes de que o Badan Palhares está sendo acusado é justamente ter tomado para seu uso pessoal, em empresa privada, um microscópio da Universidade de Campinas.)

Enfim, eu falo e falo e não consigo desmanchar a minha inútil raiva. Em todo o caso, pergunto: haverá neste acordo tolo da adolescência mental um valor superior ao valor da história da faculdade, faculdade centenária, e não casualmente da faculdade pública em que estudaram, paga com o dinheiro de todos os contribuintes? Quando é que as elites brasileiras vão tomar jeito? Quando é que esses sub-badan-palhares vão se tocar?

Luis Augusto Fischer
fischerl@uol.com.br
 

DE VOLTA PRO NÃO 69