SAFÁRI
por Ernani Ssó

Na vidraça à prova de balas da porta, lia-se, em letras pretas: Félix Ferreira - Safáris. Era uma porta relativamente gasta, ao fundo de um corredor também relativamente gasto, num edifício que fora novo no ano da primeira colônia em Marte. A porta estava fechada com um dispositivo eletrônico, mas ao lado, com a mesma inscrição, havia outra, aberta, que dava para uma cabina de identificação.

Pela janela, eu podia ver o Cristo Redentor, sem um braço e sem a cabeça, entre as nuvens de gases tóxicos. Há cinco anos estava assim, detonado numa guerra de traficantes. Era um fim de tarde e o verão rugia com o trânsito nas ruas, quarenta andares abaixo.

Acompanhei os três adolescentes pela tela do meu sistema de segurança. Devia ser a primeira vez: saíram do elevador como que aturdidos e hesitaram um instante em frente à porta da cabina. Então o mais velho entrou e disse, tropeçando nas palavras:

- Fábio da Costa Lima. Quinze anos.

Registrei o padrão encefálico dele e ordenei ao computador que o checasse. Tudo certo. Era mesmo o filho de Ulisses da Costa Lima, senador, dono de dois estados do Nordeste e de um pequeno banco, que funcionava em dezenove países.

Uma porta se abriu e ele passou para a cabina seguinte. Só entraria na minha sala depois de checados os companheiros. Se um deles não fosse quem dizia ser, ou estivesse armado, eu acionaria o gás paralisante. A concorrência era capaz de qualquer coisa.

- Jorge Leite Cavalcanti. Treze anos.

Bem mais seguro, até parecia divertido com a possibilidade de alguém duvidar de sua identidade. Não era para menos. Era o filho do Cavalcanti do monopólio dos satélites para as cadeias de televisão.

- Elisabeth Salvat da Fonseca. Treze anos.

Tranqüila, agora. Era como se se anunciasse na casa de uma amiga. Filha de Oscar Salvat da Fonseca, um dos herdeiros dos Laboratórios Salvat, conglomerado de engenharia genética, especialista em órgãos humanos, sementes e animais.

Eu mesmo uso um braço fabricado pelo Salvat, desde que perdi o verdadeiro num tiroteio na Praça Mandrake, em Ipanema. Não era muito bom, mas era o que meu seguro conseguira pagar e tinha um microcomputador instalado no pulso, como um relógio, ligado ao meu cérebro.

Sentaram, Fábio meio rígido, os outros olhando ao redor. Mesmo antes de falarem, eu sabia por que estavam no meu escritório, não num das grandes agências. Mas fiz de conta que não. Para facilitar as coisas, disse:

- Querem um cafezinho? Não? Maconha, anfetaminas… Eu sim.

Servi um cafezinho. Tomei-o calmamente.

- Quem indicou os meus serviços?

Depois de um instante confuso e hesitante, meio como se eu pudesse achar que ele mentia se demorasse, Fábio disse apressado:

- A Mary Knobel.

Mary Knobel era uma velha freguesa. Quase todo mês ela aparecia. Bastava ficar nervosa.

- Vocês já caçaram antes?

Quase se olharam. Jorge levantou um dedo e disse com alguma malícia:

- Uma vez.

- Sabem como funciona?

Os três responderam que sim com a cabeça.

- Eu quero pagamento adiantado, em dinheiro, em notas pequenas e com número de série variado. OK? Então, o que vão querer? Tigres, onças, leões, elefantes? Já escolheram a reserva?

Quase se olharam de novo. Novamente apressado, Fábio disse:

- Pobre. Queremos caçar uns pobres.

- Vocês sabem que isso é fora da lei?

Silêncio, talvez surpresa - depois eles sorriram.

- Ok. Quantos?

- Um cada um - disse Jorge.

- Que tipo?

Fábio olhou de relance para os outros. Mas Jorge, com a mesma calma e simplicidade, disse:

- Eu quero botar fogo num mendigo.

- Não quer espancar ele antes?

- Não. Só botar fogo. Quero que acorde pegando fogo.

- Ok. E você, Fábio?

- Eu quero… estuprar uma… uma…

Fez um gesto vago. Quase olhou para Elizabeth.

- Menina, adolescente, mulher…? Velha?

- Velha.

- Idade?

- Uns cinqüenta tá bom.

- Bonita?

- Não, não. Com jeito de coitada.

- Estupro na rua, ou com invasão de domicílio? Com invasão de domicílio cobro uma taxa extra de 10 mil créditos. Sempre tem problemas com os familiares.

- Mas aí… se não for uma…?

- Vou ter de investigar antes. Demora um pouco mais.

- Bem…

- Se você quer pra já, tem de ser na rua. A menos que a gente dê sorte e veja uma velha que preencha os requisitos entrando em algum lugar. OK?

- Quero… quero enfiar uma garrafa nela.

- A gente arruma, não se preocupe. E você, Elizabeth?

Era perfeita: pequenininha, lindinha, uma boneca. Talvez fosse mais produto do laboratório do pai do que dele mesmo. A mãe, sabia-se, tinha sido uma modelo famosa, que vendera seus genes para o Laboratório Salvat.

- Quero pescar um pivete.

A voz ainda era infantil.

- Vai arrastar até a morte ou…?

- Precisa arrastar quantos metros pra matar?

- Depende da velocidade, depende dos obstáculos na rua, depende de onde o arpão se cravar… Sabe, o arpão pode rasgar a carne e se desprender. É bom quando os ganchos se abrem atrás dos ossos. Aconselho a atirar nas costas, no meio da coluna.

- Mas posso executar, não? Um tiro na cara? Se não der certo…

- Não tem problema. - Esperei mais algum comentário. Ninguém disse nada. - Muito bem. Não querem participar de um massacre? Temos uma promoção este mês. Até dez pivetes, 50 mil créditos.

- Não - ela disse.

Fábio pensou em dizer algo mas desistiu. Continuou mexendo numa espinha no nariz. Era curioso tanto nervosismo.

- Com metralhadoras portáteis - eu disse, tentando ganhar tempo, com um vago sentimento de alerta. - No fundo um massacre é muito mais seguro. Mais rápido também.

- Talvez outro dia - ela disse -, mas com moto-serra. Você tem moto-serra?

- Posso arrumar.

O abrigo elástico que vestia mostrava curvas demais. Elizabeth tinha jeito de que fora preparada para o sexo, exclusivamente. Mas podia ser um disfarce para o cérebro.

Fingi consultar o computador.

- Às duas da madrugada, está bem? Só falta combinarmos o preço. Minha tabela é 20 mil créditos pelo estupro, 15 mil pelo mendigo, 25 mil pelo pivete. Forneço as armas, o overcar, os estimulantes que quiserem e dou cobertura, além de assistência médica se for preciso.

- 20 pelo pivete.

- 24.

- Estamos comemorando o aniversário dela - o Jorge disse sério.

Fábio sorriu forçado.

- OK, 23.

Tarde demais descobri que tinham vindo dispostos a pagar o dobro.

- Podemos ver as armas? - Jorge disse.

Fui abrir o cofre, depois que o computador conferiu as digitais da minha mão esquerda, o meu padrão encefálico, a minha voz e a senha para a senha. Chamei os garotos com um gesto. Não consigo evitar um certo orgulho ao mostrar minha coleção.

- Cada um terá duas armas. Você, Jorge, vai levar este mini-lança-chamas, além de uma garrafa de gasolina. Você, Fábio, esta faca. Nada melhor do que uma faca na garganta pra um bom estupro.

- Posso enfiar a faca em vez de uma garrafa?

Ansioso demais para parecer durão. Esse garoto ia dar problema. Eu tinha sentido isso desde o começo.

- Por que não? Você, Elizabeth, este arpão. A corda dele é ultra resistente e flexível. É de teia de aranha sintética. Tem 15 metros.

- Qual a precisão?

- A dez metros desvia um milímetro, um milímetro e meio. Depende do vento.

- Hoje está calmo.

- A outra arma vocês escolhem. Sugiro pistolas de onda. Vocês sabem, as ondas atingem o cérebro, causam paralisia, vômitos, diarréia. É preciso cuidado, porque na potência máxima pode fritar as células nervosas. Dependendo da pessoa a cabeça explode.

- Você vai armado, Félix?

Ela não parecia muito curiosa.

- Levo este rifle laser. Vocês estão sob minha responsabilidade.

Antes que eu impedisse, Jorge pegou uma pistola e ameaçou Fábio de brincadeira. Fábio recuou, nervoso:

- Pare com isso, cara!

Aproveitando o momento, Elizabeth também pegou uma pistola. Pelo jeito, já tinha usado armas antes. Isso não queria dizer nada, podia ter brincado muito com armas. Mas ajustou-a para potência máxima.

Me joguei no chão, rolando, enquanto sacava minha pistola.

Ela atirou no Fábio, direto na cabeça.

O tiro de Jorge não me pegou por pouco.

De trás da escrivaninha, atirei no Jorge, derrubando-o, paralisado. Depois apontei para Elizabeth, a pistola agora na potência máxima:

- Quieta.

Ela também apontava para mim.

- Empate, Félix.

- Por que você atirou nele?

- Vamos fazer um trato.

- Por que você atirou nele?

Eu esperava que ela olhasse para o Fábio. Mas nem piscou.

- Matar pobre anda fácil demais.

- Qual é o trato?

- Deixa eu e o Jorge sair. Você desova o Fábio por aí.

- Quanto eu levo nessa?

- Nós não diremos a ninguém que viemos aqui.

- A Mary sabe que vocês vieram.

- A gente apaga ela.

- A gente quem?

- Eu. Ela andou fofocando sobre minha mãe.

Respirei fundo.

- Ok.

- Você vai ter de me ajudar a levar o Jorge pro overcar, no terraço.

- Não tem problema - eu disse.

Atiramos quase ao mesmo tempo.

O impacto da onda empurrou Elizabeth um passo para trás. Ela ficou parada um instante, surpresa. Mesmo antes de cair o sangue jorrava pelos olhos, nariz, boca e ouvidos.

Era muito boa, a garota. Mas eu estava há mais tempo nesse ramo.

Fazer o que agora? Desovar esses corpos, eliminar a Mary - isso era fácil, mas depois? Cedo ou tarde iriam descobrir tudo. Não há o que as agências de informação não saibam e não há um buraco na Terra, na Lua ou em Marte onde alguém possa se esconder. Não dos pais daqueles ali.

 

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