COVERS EM PLAY-BACK

OU COMO A MITOLOGIA DISFARÇOU O ROCK, MATOU RITA

LEE E CONTRATOU SEU SIGNIFICANTE
 
 

por Carlos Gerbase
 
 

O programa chama-se "Amigos e Sucessos", vi de passagem na TV Record, numa segunda-feira à noite. Não vi todo, de modo que o meu comentário não é sobre o programa - o que não me impede de classificá-lo, depois de menos de cinco minutos, como "horrível", na acepção criada por Vitor Hugo em "Os trabalhadores do mar", quando descreve uma tempestade -, mas sobre os destinos de uma artista que dele participou e, mais do que isso, sobre o processo semiológico que está por trás do espetáculo.

Vi apenas o final da música pseudo-executada em play-back pelos Engenheiros do Hawaii, cujo título estou desesperadamente tentando lembrar, mas que parece ser do Luís Melodia, e toda a música ("Papai me empresta o carro"), "cantada" por Rita Lee com a ajuda de vários Titãs. E aí logo pensei: eis aí uma geração importante do pop-rock brasileiro tentando sobreviver ao axé, ao sertanejo e ao pagode, lutando desesperadamente para manter algum mercado, e perdendo definitivamente toda a compostura. Uma análise econômica e, portanto, muito lógica, muito embebida de causa e efeito e, no final das contas, muito redutora.

Vamos pensar um pouco além. Por quê discutir a integridade ideológica dos Engenheiros do Hawaii? Vamos convir que ela nunca houve. Assim, o espetáculo (levemente deprimente) que eles protagonizaram em "Amigos e Sucessos" está totalmente de acordo com o histórico da banda e com a maneira como ela se inclui politicamente no mundo. O play-back (fazer de conta que se canta e toca sobre uma base pré-gravada) de um cover (versão, mais ou menos estilizada, que alguém faz de uma canção de sucesso) é uma atitude como outra qualquer, destinada a vender mais discos e aumentar o cachê da banda quando esta toca "de verdade" e é paga para isso. Resumindo: os Engenheiros do Hawaii sempre foram apenas seus significantes.

Mas será que podemos ser tão indiferentes assim para aquela Rita Lee, que um dia esteve nos Mutantes, banda revolucionária do rock brasileiro (que não tinha "medo" da Televisão e de seus subprodutos, como os festivais de música, mas onde tocava ao vivo, sempre é bom lembrar). Não, meus amigos, é muito sofrido, muito desagradável, ver uma coisa daquelas. E a razão é simples: aquela Rita Lee, um dia ícone da contra-cultura, agora é artista da grande (e velha) mitologia que faz funcionar (e legitima) a indústria da música.

Choramos (metaforicamente, é claro) porque Rita Lee, ao contrário dos Engenheiros em 86, era, em 68, um signo completo, tinha significante e significado. Choramos por lembrar nossas adolescentes esperanças de nunca nos incluirmos nessa mitologia, de nunca compactuarmos com as regras do tele-catch de Barthes. E, Rita Lee, que estava do lado "de cá", fora da mitologia, agora está do lado "de lá", dentro dela. E o mais importante: NÃO PRECISA HAVER AÍ UMA CONDENAÇÃO POLÍTICA! Nisso estou com o Caetano (acho que é só nisso): "Abaixo as patrulhas!". Eu aposto que Rita Lee pensa, hoje, como pensava em 68, ou quem sabe pensa até melhor. Mais: esse negócio de fazer play-back com os Titãs pode até ser divertido para ela. Se não é divertido para mim, problema meu. Por isso estou escrevendo sobre isso, e ela não.

O mito é, em si, apolítico, porque age de modo a tornar os fatos históricos (e políticos) em atos naturais, para os quais não se precisa explicar nada, justificar nada. O mito fornece todas as regras necessárias para justificar o programa "Amigos e sucessos": o público sabe exatamente o que esperar daqueles "artistas", e estes executam todos os movimentos previamente combinados. O que importa o que os artistas dizem? O que importa é o grande espetáculo, essencialmente "formal", que transcorre sem grandes sobressaltos. Choramos por Rita Lee porque ela hoje está vazia de conteúdo, outra característica do mito.

"Amigos e Sucessos" não é grande novidade. Lembro que, quando gravamos nosso primeiro disco na RCA, o divulgador chegou pra nós, todo contente, e disse que poderíamos tocar no Chacrinha. E nós (nós = Os Replicantes, banda meta-punk de Porto Alegre, onde, na época, 1986, eu tocava bateria) olhamos pro cara e dissemos: "Não. Nem fudendo. Nós não queremos tocar no Chacrinha". O divulgador não acreditou. Tivemos que repetir a recusa outras vezes e, quase sempre, para amenizar nossa rebeldia juvenil, dizíamos: "Tocamos em qualquer programa que seja ao vivo"). Essa atitude, podem imaginar, já nos trouxe imediatamente uma imagem legal na gravadora: "Aqueles guris bundões e burros que se recusaram a tocar no Chacrinha".

E, até hoje, eu me sinto dividido na análise da nossa decisão. De um lado, perdi a chance de ter vivido a experiência (ao vivo, porque não seria uma versão "cover" de mim mesmo que estaria lá, nessa coisa maluca que era o programa do Chacrinha, um zilhão de vezes melhor que "Amigos e sucessos"), mas, do outro, acho que foi a atitude certa para a banda, que tinha acabado de fazer um disco que afrontava (ou apenas, timidamente, pretendia afrontar) a mitologia, tentava falar sobre ela, claro que criando um novo mito, "o mundo segundo Os Replicantes", justamente para desmistificar um pouquinho a grande mitologia que legitima o "Amigos e Sucessos" e sustentava o Chacrinha.

Se tivéssemos tocado "Surfista calhorda" em play-back no Chacrinha (naquela época, ou agora, no "Amigos e sucessos") estaríamos imediatamente nos colocando ao alcance do poder despolitizador do grande mito, da grande fala, da qual a nossa gravadora, a RCA, era uma peça importante. E aí esmagaríamos totalmente nosso pequeno mitinho, um disco, ainda de vinil, preto com um furo no meio. Um tiro na testa do signo.

Quando vejo fãs dos Replicantes com 15 anos de idade, e portanto mais moços que a banda, não vejo qualquer possibilidade de eles terem sido atraídos por outra coisa que não essa capacidade que tivemos (e muitos outros têm e tiveram, em todos os tempos, desde a Grécia antiga) de viver à sombra da grande mitologia e construir pequenas mitologias próprias. Esses fãs de 15 anos vem atrás do nosso pequeno mitinho sobrevivente. Eles ainda admiram aqueles Replicantes, que NÃO apareceram no Chacrinha. Elas admiram esse NÃO. Podem criticar à vontade, mas sempre fomos uma banda muito não. Em dúvida, dizíamos "não".

É absolutamente idiota chorar pela Rita Lee do programa "Amigos e sucessos", ou lamentar o destino da "artista íntegra" do passado. Aquela Rita Lee não está lá. Está apenas o seu significante atual, esvaziado de tudo, fazendo o que sempre fez, desde que começou com os Mutantes: ajudando a fabricar o mito que a sustenta. O significante de Rita Lee, infelizmente para ela, não estava lá muito animado. Mas o que importa? São os micos que se pagam nessa vida artista, não é mesmo? O mito foi despolitizando Rita Lee aos poucos, até que só restou o discurso, a "forma" Rita Lee.

E isso é que, imagino, deve chocar outros além de mim. Ou não choca ninguém, e esse é um problema só meu. Sou incapaz de ver e ouvir aquilo e simplesmente considerar que aquilo é, sim, a velha e talentosa Rita Lee, acompanhada de alguns Titãs, pagando esse imenso mico, e então curtir a bobagem toda, sem estresse (ô, Heron, tem que ressuscitar o personagem, que é tremendamente pós-moderno), e rir bastante daquela breguice. Mas, idiota que sou, não consegui achar graça no espetáculo e, pior, escrevi esse imenso e confuso texto para tentar explicar meu sentimento, acrescentando exemplos pessoais mais confusos ainda. Duvido que o Jorge publique.

Uma última palavra, que é mais uma explicação desnecessária: escrevi esse texto influenciado por algumas coisas que li (ou reli) na minha nova vida de acadêmico, principalmente "Mitologias" do Barthes. Então, aí está um bom motivo para a inclusão dessas palavras tão bonitas, como "mitologia" e "significante". Se o Jorge não publicar, posso copidescar, melhorar um pouquinho (principalmente dar um jeito de modernizar o discurso de Barthes, que ainda achava, ingenuamente, que a "esquerda" não criava mitos, vivia alheia aos mitos criados pela burguesia e não os utilizava para os seus objetivos pretensamente revolucionários), e apresentar como um ensaio acadêmico, submetendo-o à mitologia própria de um aluno esforçado. Em suma, posso reciclar e usar adiante. O que é muito ecológico, está na moda e reduz meu esforço em busca de ser admitido pelos meus pares. Ou não.