Conto Vazio
por Lafaiete Rosinsky

No bolso dianteiro do casaco de linho gasto, encontraram o bilhete. Folha de ofício dobrada em quatro, com 15 linhas batidas a máquina em espaço três, obsessivamente posicionadas no centro da página.

Não se culpem
culpem a mim
culpem minha incapacidade de viver o mundo
minha inaptidão para o convívio, minha tristeza feroz
minha necessidade desmedida de amor
às pessoas que eu amava e a quem inadvertidamente magooei:
Sinto muito
às pessoas que eu odiava e a quem feri:
Eu poderia dizer que não foi pessoal, mas estaria mentindo
às pessoas a quem eu amava e a quem não tive tempo de ferir
(será que sobrou alguém?):
São meu testamento, pois lhes dei o melhor de mim
às pessoas que eu odiava, mas que não consegui ferir:
Que pena... Fica pra próxima

Sem assinatura.
Como se fosse uma relíquia de outras eras ou um visitante do passado, escolhera o suicídio antiquado saltando do viaduto no viaduto. Misturara seu sangue ao pó do asfalto pulando do mesmo lugar onde no passado dezenas haviam decidido descer de uma rua para outra, de uma realidade para outra, de um mundo para outro. Abraçou a selvagem esperança.
A imprensa não publicou uma linha. Suicídios no jornal poderiam estimular outros casos, era a filosofia.
Não tinha documentos. Uma verificação das digitais e a subseqüente comparação com os registros da polícia poderiam ter revelado quem era. Mas era Carnaval. Os crimes se avolumavam, as atribuições da perícia se sucediam implacavelmente e o trabalho foi sendo postergado até cair no vazio sem que ninguém tivesse interesse em cobrar uma definição.
Passados três meses, foi enterrado como indigente. Apenas 15 dias depois de o dono da pensão em que vivia ter vendido seus pertences a lojas de artigos usados como forma de reaver o aluguel não recebido.
O bilhete ficou um ano arquivado na pasta do inquérito. Perdeu-se quando a delegacia mudou de prédio, mas até hoje ninguém se deu conta.
Os colegas do trabalho infamante a que se submetia todos os dias estranharam sua ausência, mas não havia ninguém com motivos bons o suficiente para procurar por ele. A essa altura, já havia sido demitido à revelia. Outros três meses e foi esquecido.

Como se jamais houvesse pisado sobre a terra.

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