Maracanã, Tombstone

Por Cláudio Dienstmann

O gramado do Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, tem 105 metros de comprimento por 70 de largura, ou 7.350 metros quadrados, menos de um hectare, um grão de areia dentro do Brasil, 8 milhões de quilômetros quadrados. No último jogo da Copa do Mundo de 1950, dia 16 de julho, o Brasil precisava apenas de um empate contra o Uruguai para ganhar o título - no Maracanã. Foi a única vez nas 16 Copas que as finais tiveram a decisão num quadrangular, e estávamos com um ponto a mais. Então seria decidido assim: ou éramos o maior país do mundo, ou o pior, e nada no meio. Os uruguaios ganharam por 2 a 1, de virada. Tinha que ser assim, para aumentar o drama. E o Maracanã ficou marcado como cenário da maior tragédia do futebol brasileiro, a tragédia definitiva do Brasil, cada vez mais lembrada (a desgosto dos seus personagens vivos, 50 anos depois), inclusive e em especial curiosamente por quem nem tinha nascido na época. A final de 50 no Maracanã rende cada vez mais livros, reportagens, filmes e morbidez, e já é a grande lenda brasileira. O fascínio envolve as pessoas, que não querem esquecer e perguntam: o que houve?

O Curral Ok, em Tombstone, Arizona, nos Estados Unidos, tinha uma cerca de madeira, uma ferraria, e espaço para meia dúzia de carroças e cavalos, que geralmente chegavam exaustos e bebiam a água dos cochos cavalarmente. No dia 26 de outubro de 1881, no Ok Corral, três irmãos da família Earp - Wyatt, Morgan e Virgil -, reforçados pelo dentista-tuberculoso-pistoleiro Doc Holliday, resolveram apelar (depois de muito enrosco) para uma dramática definição a chumbo com Ike e Billy Clanton, Frank e Thomas McLaury, e Bill Brocius. Matar ou morrer, e nenhuma opção no meio. Quando as balas pararam de voar, só 30 segundos depois, havia três mortos contorcidos sangrando no meio da poeira: os dois McLaury e o mais jovem dos Clanton, Billy. Ike e Brocius tiveram tempo de se mandar. Só de filmes já foram feitos 80 nos Estados Unidos sobre o tiroteio de Tombstone. O duelo do Ok Corral talvez seja a grande história americana que os americanos acreditam que ainda não têm. E quanto mais se fala e se lê e se ouve - fascínio mórbido - cada vez mais se sabe menos sobre Tombstone: quem, como e por que tudo começou? E quem, afinal, era o bandido e quem era o mocinho?

Nas duas tragédias, Maracanã e Tombstone, a lenda confunde e supera os fatos - e se a versão for melhor do que a realidade, publique-se é claro a versão. Em 50, há meio século, não havia TV no futebol, as nossas rádios eram puro ufanismo nacionalista, e pouco existe de filme do mundial; do próprio gol dos 2 a 1 uruguaios marcado pelo atacante Ghiggia só existem quatro fotos (das quais um jornalista de Porto Alegre têm três). Em Tombstone, em 1881, há 119 anos, na falta da CNN houve apenas a cobertura jornalística de John Clum, dono do periódico da cidade (que tinha o sugestivo nome de "O Epitáfio"). E só.

Biógrafos de Wyatt Earp admitem que ele tinha o feio hábito de esbofetear os seus oponentes - como xerife, condutor ou criador de gado, dono de terras, jogador de pôquer e faraó, segurança, e finalmente revisor da sua própria história (um cara criativo). Em algumas versões consta que para o duelo mortal ele levou também o reforço desequilibrador de dois canos de espingarda, que os oponentes só percerberam quando já não dava para recuar. A lenda do Maracanã também menciona um tapa como os de Wyatt, só que do capitão do Uruguai, Obdúlio Varella, e no rosto do lateral Bigode, em plena disputa do jogo. Na noite de 16 de julho, Obdúlio saiu sozinho do seu hotel no Rio (Humaitá) e foi tomar umazinha no bar da esquina. Desatento, só viu que estava no meio de uma dúzia de brasileiros quando a galera já vinha cercando: "El gran capitan" passou rapidamente do susto para a pena, pois as pessoas só queriam cumprimentá-lo, e ele foi tristemente abraçado, tristemente elogiado, tristemente comemorado - e totalmente bêbado levado de volta ao hotel às 7h da manhã pelos novos amigos. Bigode - que teria ficado reduzido a trapo -, o zagueiro Juvenal e o goleiro Barbosa foram eleitos os grandes vilões do Brasil em 1950. Os três eram pretos. Não por acaso, o Brasil disputou o Mundial de 1954 com um time mais claro, mas entrou pelo cano também. Hoje os psicólogos do futebol falam em jogadores "melancólicos", mas naquele tempo foi dito claramente que "alguns cagões amarelaram". Ainda na Copa de 1958 a pele mais escura só ganhou lugar no time brasileiro durante a competição (Didi, Garrincha, Vavá, Pelé, Djalma Santos), e o Brasil finalmente foi campeão.

Ajuste de contas, massacre, legítima defesa, execução, justiça, vingança, única solução - há outras escolhas contraditórias em relação ao duelo do Ok curral, a maioria delas edificante, talvez porque o tiroteio aconteceu num país que convive com a pena de morte. Os 80 filmes sobre o tema também fazem relatos muito variáveis, embora igualmente com maioria para o elogio da lei (?). "Sem lei e sem alma" (1956) mostra uma linda amizade entre Wyatt (Burt Lancaster) e Doc (Kirk Douglas) dormindo ao lado de fogueirinhas no meio do mato. "Frontier Marshall"/"Lei da fronteira" (1939, com Randolph Scott, César Romero, John Carradine, Lon Chaney Jr.), "Lei e ordem" (1932, Walter Huston), "A hora da pistola" ("In hour of the gun", 1967, James Garner/Jason Robards), e principalmente "My Darling Clementine"/ "Paixão dos Fortes" (John Ford dirigindo Henry Fonda e Victor Mature em 1946) mostram um herói exemplar, íntegro, justo, família, bom, enquanto os bandidos estão claramente identificados por seu mau comportamento, roupas sujas, maus dentes, cabelos despenteados, caras e hábitos de bêbados. "Wyatt Earp" (1994) mostra Wyatt/Kevin Costner atormentado, e Denis Quaid faz o mais sinistro Doc. Em "Tombstone" (mesmo ano) Wyatt/Kurt Russell julga, condena e executa - "Eu sou o inferno", ele grita -, e Val Kilmer é um Doc juvenil. Mas é em "Massacre dos pistoleiros", "Doc", 1971, de Frank D.Gilroy e Frank Perry(obrigado, Giba Assis Brasil), que Wyatt/Harris Yulin (valeu outra vez, Giba) interpreta um xerife claramente canalha que persegue e leva uma surra incrível de um Ike Clanton pacato criador de gado, enquanto Doc (Stacy Keach) ganha o amor de Faye Dunnaway.

As contradições também estão presentes na final de 50 no Maracanã. O Brasil era favorito porque tinha massacrado todos os seus adversários (menos - atenção - a modesta Suíça), enquanto o Uruguai vinha se arrastando a pau e corda. Havia 200 mil brasileiros no estádio, e os jogadores uruguaios pareciam só ter para entrar em campo - além da fama de violentos e do descrédito das próprias autoridades do seu país - praticamente o orgulho, a camiseta celeste e a letra do seu hino, que fala em morrer com honra ou ir para a tumba. Exageros à parte, o Uruguai costumava bater no Brasil em qualquer lugar, inclusive no Rio de Janeiro. Os jogadores uruguaios tinham o melhor material de jogo do mundo, inclusive chuteiras feitas de fino couro de cabra. E eram tipos enfezados que gostavam de grandes festas - ou de estragar a festa dos outros. Esta é a parte da lenda do Maracanã vista do lado celeste.

Em Tombstone, para compensar a desvantagem no número de pistoleiros, quatro a cinco, os Earp teriam ido para o duelo reforçados com os já citados rifles, mas poucos filmes admitem isso. Para edificar ainda mais os heróis (?), algumas versões incluem no time Clanton o bandidão Johnny Ringo, pontaria mortal que antes teria sido amigo de Wyatt. Menos de dois meses depois do sangrento duelo, Virgil Earp foi baleado em dezembro de 1881 mas sobreviveu, e Morgan acabou assassinado em março de 1882. Mas algumas versões do grupo do herói bonzinho referem Earps mortos - um ou mais deles - antes até do duelo (que nesse caso passaria a ser um ato de defesa - ou vingança).

Wyatt Berry Stapp Earp nasceu em Monmouth, Illinois, dia 19 de março de 1848, e morreu em Los Angeles, Califórnia, a 13 de janeiro de 1929, com 80 anos. Teve quatro irmãos - Virgil, Morgan, James e Warren. E vá lenda: muita gente afirma que o duelo nem foi no Ok Corral. Celia Ann "Mattie" Blaylock, segunda mulher de Wyatt, uma ex-prostituta (e depois prostituta reincidente, como costuma ocorrer com as dedicadas profissionais do sexo) cometeu suicídio depois de ser abandonada. Cadê o marido e herói imaculado? O mito sai pela linha de fundo, mas o caso é que Wyatt, o pistoleiro que conseguiu morrer velho, construiu assim a sua própria lenda, contando-a e refazendo-a à sua própria maneira - inclusive para John Ford.

Escrever sobre a Copa de 50 virou moda no Brasil. Zizinho, um dos jogadores do desastre brasileiro, diz que não tem mais saco para aturar a mesma prensa todos os anos, e quando chega julho o mestre Ziza desliga o telefone. O melhor livro sobre o assunto é "Anatomia de uma derrota", de Paulo Perdigão (também especialista em faroestões, principalmente "Shane"/"Os brutos também amam"), com nova versão, acrescentada. Até um João Máximo, que acha que Falcão no futebol foi apenas "um peladeiro" e Elis Regina como cantora "só uma careteira", tira uma casquinha. O talentoso e jovem repórter Fábio Victor, pernambucano e torcedor do Sport a serviço da Folha de São Paulo, é que dá a definição exata de 50: a mãe de todas as derrotas, a derrota eterna - o Maracanazo pulsa, é uma dor que nunca acaba.

O faroeste mudou, os filmes faroestão sumiram ou mudaram. Clint Eastwood é o exemplo mais recente, mostrando um velho pistoleiro humilhado, acovardado, surrado. Depois de bandidos desdentados, índios ferozes e mocinhos higiênicos, fica combinado que no mundo real não existe e nunca existiu uma rigorosa separação entre Brasil e Uruguai no futebol, entre Earps e Clantons no caráter, entre o bem e o mal: ninguém é só mau, e ninguém só bom. Não há mais mocinhos. Nunca houve, na verdade. Nem em Tombstone em 1881, nem no Maracanã em 1950. Duelos a bala e também o futebol têm em comum afinal o fato de serem expiações, e fenômenos de exposição pública que podem escancancar os melhores e os piores sentimentos humanos.