Amor-perfeito

Por Cristiele Magalhães Ribeiro
 

Ele não sabe quem eu sou. Ele não me conhece, não sabe a cor dos meus olhos, nunca mordeu as minha coxas, nunca me viu sorrir. Ele sabe que eu escrevo e que amo tantos homens em meus textos, homens que na verdade nunca amei, e se amei não fui amada, e se não fui amada, pouca diferença fez. Ele também escreve, e escreve para tantas mulheres, e talvez fantasie mais do que eu, ou apenas escreva melhor. Um dia eu encontrei um texto seu, dias depois outro, e assim fui encontrando pedaços de alguém que eu nunca soube se realmente existe. Já vi algumas fotos, mas não sei se pessoalmente ele é mesmo assim. Já conversamos pelo icq, mas eu nunca pude telefoná-lo às 15h.

Se ele realmente existe, eu sei o que ele faz, que cor tem seus cabelos, os seus olhos, os seus sonhos. Eu sei que se eu for em alguns lugares, poderei achá-lo e se isso acontecer, correremos um sério risco de sermos muito diferentes e de nunca mais colocarmos "on line" um na tela do outro. Mas o contrário também pode acontecer, talvez mesmo não sabendo quem eu sou ele vai se interessar e vai querer saber que horas eu acordei para ouvir o som da madrugada, o que eu faço depois das aulas de Ciências Sociais, em que salas eu tenho aulas de Comunicação, o que eu sinto quando entro no hospital e vejo tantas crianças carequinhas, sem mãe, sem pai, soropositivas ou não, pedindo sempre por um pouco mais de carinho num mundo tão insano. E se ele souber isso, talvez ele se interesse mais e pergunte em que outros lugares em também trabalho, e por que eu faço tanta coisa ao mesmo tempo, e por que eu choro quando a mãe não está legal ; e talvez queira saber qual o meu interesse em fazer um projeto sobre o GAPA se há tantas coisas para se fazer mais novas e rentáveis que esta. Se ele souber que eu também gosto de techno de vez em quando, só de vez em quando, quando estou muito cansada, estressada, perdida, carente, quando o sábado à noite não pode ser apenas mais um sábado à noite, quando conhecer alguém não pode ser apenas mais um nome na agenda de telefones que é sempre esquecida na última gaveta da última sala que eu nunca vou.

E se ele lembrar que tem meu e-mail gravado no seu computador, se ele souber que estou sempre procurando textos que sejam assinados por ele, e se ele perguntar por que meu nick é tão estranho e sem sentido e se ele não se importar que eu não tenho maiores explicações para isso, e se ele souber que eu prefiro "A lenda do pianista do mar" à "Chá com Mussolini"; Elis Regina à Chico Buarque, e se ele quiser me mostrar o mundo dele, sem preguiça, sem ficar chateado, mas com prazer, querendo me conhecer ainda mais...E se eu dizer que gosto de Adriana Calcanhoto e se ele disser que não gosta, não tem problema, há tanta coisa para fazer amanhã, aqui, lá, em tantos lugares....E se ele me beijar, e se a gente gostar, ele vai saber que eu não procurava apenas os textos dele, eu procurava também saber se ele realmente existia, porque se isso acontecesse, seria perfeito, e aquela noite poderia ser escura ou clara demais, que eu não iria dormir, que eu não iria sonhar, eu não iria imaginar como seria se a gente não tivesse se encontrado, eu iria apenas servir uma dose de whisky, colocar Cássia Eller para tocar , me deitar no sofá e, com os olhos bem fechados, cantar baixinho "Try a little tenderness."