A Corrida do Século

Por Gustavo Franco


Desde que os esportes ganharam a simpatia e a torcida da população mundial, o ideal do Barão de Coubertain foi se esvaindo até chegarmos à célebre frase do Capitão Dunga: "Aquele que disse que o importante é competir não conheceu a frustração da derrota". De fato, ao vencedor sempre foram todos os despojos, e não demorou muito para que outras pessoas resolvessem dividir e lucrar com os louros da vitória. Antes mesmo que surgissem os patrocinadores, os governos, alguns democráticos e a maioria totalitarista, já usavam as competições esportivas como forma de promoção de seus líderes e ideologias. Da Alemanha de Hitler à Pátria de Chuteiras dos militares brasileiros e argentinos, pode-se relembrar dezenas ou até centenas de ocasiões em que de uma glória esportiva dependeu todo um sistema de governo.

A razão pela qual estamos aqui hoje, a bem da verdade, não diz respeito a uma Guerra Mundial ou uma Revolução Latino-americana. Partindo do princípio fundamental de que os lugares mais improváveis guardam as histórias mais insólitas, fizemos uma pesquisa por todos os cantos deste país para encontrar algum caso em menor proporção, mas de idêntico impacto, que justificasse ao menos o preenchimento destas páginas. Como já era de se esperar, acabamos tendo que recorrer ao velhinho da padaria para não sairmos de mãos abanando. Felizmente, nossa curiosidade foi saciada com um dos contos esportivos menos ortodoxos de que se teve notícia nos últimos cem anos, a ponto de merecer o imponente título que acima vos contempla.

Tudo aconteceu na pequena e pacata cidade de Suvolândia, que fica em algum lugar do interior do Brasil (a memória do velhinho não é a mesma de outras épocas). Suvolândia era minúscula, mas já tinha os costumes de toda cidade grande, como o de eleger um prefeito meia boca só para malhá-lo nos quatro anos seguintes. Era o calvário pelo qual passava o último alcaide do município, o farmacêutico Lucas Babosa, que se proclamava descendente direto do lendário Rei Baião, soberano de Xurupitanga, o que é suficiente para se notar que a escolha não poderia ter sido mais adequada. Já no último ano de seu mandato, Babosa havia realizado o mesmo que seus antecessores: absolutamente nada. A população só estava esperando a eleição chegar para colocar o próximo palerma no poder, e não havia muita coisa que Babosa pudesse fazer para mudar seu pífio futuro político. Ou será que havia?

Com problemas de caixa, uma Câmara bissexta e um secretariado morfético, não seria pela eficiência administrativa que o jogo das urnas poderia ser revertido. Mas ainda restava uma sutil esperança. Todo ano, em final de setembro, era promovida a maior competição atlética da região, os 10 km da Suvolândia, em homenagem ao aniversário da cidade. A nobre idéia, contudo, já havia se tornado motivo de gozação contra os suvônicos, porque, em 50 anos de história, nunca um competidor local conseguira vencer a importante disputa. Prefeitos anteriores já haviam chegado a contratar treinadores aposentados para formar um atleta que pudesse encerrar aquela miséria no quadro de medalhas, mas o máximo que conseguiram foi um décimo lugar, no ano em que só quinze competiram por causa do custo das inscrições. Portanto, se ocorresse um milagre, e um corredor da cidade vencesse a prova, o fato teria tanta repercussão que a sua gestão ficaria marcada para sempre na memória do povo, a ponto de conseguir a inédita reeleição.

Como não custa fazer uma fezinha no inusitado de vez em quando, Babosa saiu pela Prefeitura perguntando se havia alguém capaz de suportar ao menos o perímetro da cidade sem parar no necrotério. Foi quando o faxineiro lhe revelou a grata surpresa de que, ali mesmo, no primeiro andar, conhecia um funcionário que corria regularmente cinqüenta quilômetros por semana, só para manter a forma. E quem seria essa locomotiva caipira? Era Nelson Dini, assessor da Secretaria de Transportes, um ilustre desconhecido até pelo próprio secretário. Como não havia tempo a perder, Nelson foi imediatamente convocado para comparecer no gabinete do prefeito, e lá ficou por mais de duas horas até que Babosa se desse conta que não se tratava do novo contínuo, mas de seu superatleta. O prefeito esclareceu que o inscreveria na corrida e, se vencesse, faria todas as mutretas possíveis para promovê-lo e quadruplicar seu salário. Portanto, ele deveria se licenciar de suas atividades e se preparar exclusivamente para o dia D, no melhor estilo "Carruagens de Fogo" – filme ao qual foi obrigado a assistir diariamente, como forma de preparação psicológica.

Despesas não foram poupadas na criação do novo (na verdade, o primeiro) fenômeno atlético da Suvolândia. Para comandar os treinamentos entrou em cena o técnico Fernando Amaral, famoso na cidade por ter, em sua juventude, disputado a São Silvestre e terminado entre os dez mil primeiros colocados. Uniformes, equipamentos e isotônicos de última geração foram comprados com o orçamento outrora destinado à escola pública, sob a justificativa de que era "melhor uma juventude toupeira que um povo eternamente ferido em seu orgulho cívico". Faixas, cartazes e impiedosos alto-falantes foram colocados nas ruas para convocar a torcida pela grande vitória. Na Barbearia do Vicente, eterno Fórum de debates da cidade, os fregueses se revezavam nas cadeiras, expondo seus prognósticos a favor ou contra a pérola suvônica. Para completar, a rádio local abandonou sua linha corno-sertaneja para assolar os ouvintes com temas esportivos, que iam desde o Pá-pá-pá do "Esporte Espetacular" até a trilha sonora da série Rocky.

Neste cenário olímpico, não faltavam locutores oficiais para narrar a corrida. A popular dupla de narradores de rodeio "Tio Faissal" e "Tio Edgar" foi contratada, sob a condição de que Edgar levasse uma bandeira-monstro com os dizeres "AVANTE, NELSON DINI!" E qual não foi a surpresa de ambos ao compararem o visual do herói da cidade com os rivais da região. Para se ter uma pequena idéia da disparidade de equipamento, enquanto o representante da vizinha Porcogônia era um exemplar do mitológico "negão de dois metros" usando apenas bermuda e chinelo, Nelson Dini calçava os únicos tênis Nike num raio de mil quilômetros, vestia o mais moderno macacão colante da Reebok e se valia até de protetor solar e óculos escuros especiais para enfrentar o calor do início de Primavera. A competição estava ganha antes mesmo de começar, tal a diferença de preparo entre o furacão de Babosa e os pés-rapados das outras localidades. Mesmo a oposição já estava com o requerimento de renúncia de seu candidato pronto, para evitar uma retumbante humilhação nas urnas.

Nessa parte, os leitores já devem estar imaginando o que ocorreu em seguida: Nelson Dini venceu a corrida e Babosa se tornou o Duce interiorano. Pois saibam que não foi exatamente este o final da história. Aliás, está bem longe de ser o desfecho deste episódio dos anais suvônicos. A questão é que Nelson Dini, acima de tudo, era um servidor público, e como todo funcionário desta espécie, tinha um ritmo bem peculiar. O fato de correr com facilidade distâncias maratônicas não queria dizer, necessariamente, que seus tempos fossem dos mais impressionantes. Voltemos, então, à ordem dos fatos para saber como realmente se encerrou sua epopéia.

Antes de mais nada, devemos esclarecer que a prova consistia em dez voltas ao redor da cidade. Os locutores ficavam na linha de chegada acompanhando a colocação parcial dos competidores. Já na primeira volta um autêntico raio de pernas passou por Faissal e Edgar, a ponto de este último haver exclamado: "Mas como corre esse Nelson Dini, não é mesmo, Faissal?". Mas este respondeu: "Olha, Edgar, pelo cheiro de desodorante vencido, aquele não era o seu herói, não!" Ele tinha razão, pois Nelson Dini só completou a volta quinze minutos depois, na trigésima posição. Sentindo que seu pupilo estava em dificuldades, o treinador Amaral entrou na pista e, correndo de costas, deu novas instruções, sendo obrigado a diminuir o ritmo para não ultrapassá-lo. O prefeito, desesperado, gritava para que o portento desse sua grande arrancada, mas aquele trotar entediante era o único ao qual Nelson estava habituado. Não demorou muito e o primeiro colocado já estava cinco voltas a sua frente, a ponto de Edgar ter ateado fogo na bandeira de incentivo.

Minutos depois, Nelson Dini finalmente deu sua disparada. Não em direção à linha de chegada, mas para longe da cidade, fugindo da ira dos torcedores alucinados sedentos de sangue, pois haviam apostado suas economias na grande barbada. Não apenas deixou de completar os dez quilômetros como nunca mais voltou à Suvolândia. Dizem que vive por aí, correndo sem rumo, no mesmo passo letárgico que o consagrou. Quanto ao prefeito Babosa, teve o seu impeachment decretado no mesmo dia, bem como sua farmácia inteiramente depredada pela população. Quem dera todos os governantes que tentam camuflar suas falhas com os triunfos alheios tivessem o mesmo fim... Em tempo: o negão de chinelos venceu a corrida, que nunca mais foi disputada para evitar novos constrangimentos ao já abalado moral da pobre Suvolândia. Acreditem ou não, esta história é baseada em fatos verídicos.