Amor e circunstância
Por Miguel da Costa Franco
Era uma tarde tríste e abafada de janeiro. Seca e poeirenta. As ruas da cidade estavam convenientemente vazias e quase se podia ver o hálito morno das calçadas abandonando as lajotas ressecadas do passeio.
Má idéia tive em ir ao clube, que pululava de peruas à beira da piscina, lendo Caprichos, Vejas e Caras e queimando as carnes, em poses estapafúrdias. Não havia sequer uma cadeira para recostar o lombo. Uma sombra livre, ao menos.
Ninguém vai bisbilhotar aí para ver se está dourado, pensei em dizer à última pelancuda, que se esforçava em expor ao sol o entrepernas mole e branquicento, quando, já fugindo, eu cruzava o portãozinho da saída.
Ganhei novamente a rua e me vi só, mas não tão tríste. A multidão do clube me fizera, mais uma vez, valorizar a solidão. Pensei em sorvetes, caranguejos vermelhos à beira-mar, cervejas geladas sob amendoeiras. Ou ficar rodando pela cidade trancafiado no ar condicionado do carro, ouvindo os delírios sonoros do B.B. King ou um velho disco do Paulo Diniz que ganhara do Salomão. "I don´t want to stay here...". E nem em qualquer parte. Mas nem em sonhos queria estar na Bahia. Definitivamente, não gosto da Bahia e sua miséria satisfeita.
Duro consertar a vida numa tarde suarenta de janeiro!
Podia estar brincando na piscina do Antenor com as crianças, vendo filmes adolescentes na televisão, deitado na laje fria do chão, podia estar na casa de praia, no frescor da rede, na casa dos amigos, rindo e tomando a décima-oitava cerveja... Mas preferira estar ali, sozinho. E evidentemente fraquejava.
Foi quando a vi, num vestidinho estival de tons azulados, que sacudia em harmonia com o movimento manso das pernas - tão lindas pernas - ao sabor de um vento inexistente. Pensei lembrar-me dela. Teria um nome meio americanóide, meio hippie, lembrando uma cidade do faroeste, Abilene ou algo assim. Ou talvez um desses nomes infantis com que se batizam as cadelinhas poodle. Sei com certeza que era um nome da década de 70, o que a depositava convenientemente na periferia adorável dos trinta anos, onde a experiência passa a superar o ímpeto na parte de cima do lençol.
Tinha um porte esguio de bailarina e os gestos suaves e precisos, e lançou-me um sorriso breve - o primeiro sorriso doce do ano -, mas sua dentadura perfeita manteve um brilho mágico em seu rosto por muito, muito, muito tempo. Não havia arrogância em seu olhar, nem agressividade nos seus gestos, não havia presunção em seu sorriso. Era mais segura do que bonita. Mais humana do que ilusão. Era, ela mesma, uma onda de frescor.
Timidamente, baixou os olhos, que eu percebera claros, e deixou em mim uma indelével mancha de batom na alma.
Desejei profundamente deitar minha cabeça cansada ao seu lado, aspirar o perfume implícito dos seus cabelos. Perder-me em carícias suaves por suas pernas longas e seus seios arredondados e bem feitos. Fazer arrepiar-se a sua pele amorenada e lisa naquele calorão de janeiro. Devolver-lhe em toques respeitosos e despudorados o prazer que sua simples visão me permitia.
Seria tão bom passar a tarde assim!
Mas quando vi, se tinha ido. E com ela e seu adorável vestidinho estival, adorno displicente e jovial de um amor descabido para as circunstâncias. Talvez demorasse mais dez ou quinze anos para vê-la novamente, num acaso da sorte, as pernas - então quarentonas - ainda robustas e os dentes perfeitos reforçando meu desejo recolhido, agora cinquentão.
Mal sabe ela ter provocado em mim a certeza do abandono, uma solidão inexorável, um desejo de derreter-me ali, naquele passeio escaldante, uma tristeza infinita.
Mas Abilene não voltou os olhos uma única vez e passou por minha vida, como planta secado deserto em bangue-bangue italiano, rolando, rolando em meio ao vento e ao pó.