Um conto de Gramado

Por Tomás Creus

Não é difícil fazer-se passar por cineasta. Basta utilizar a roupa adequada, manter a expressão facial correta (lembra um pouco o tédio, mas não é exatamente igual), e falar com uma modulação específica da voz. O resto — credenciais, convites, óculos escuros — são apenas detalhes desnecessários, quase obsoletos.

Eu e o Max íamos todo ano a Gramado ("cidade européia no sul do Brasil", de acordo com o ridículo folheto) para participar do Festival de Cinema. Como não nos interessávamos muito por filmes, e menos ainda por filmes brasileiros, não fazíamos questão de entrar no Palácio dos Festivais. O que nos importava mesmo eram os coquetéis e as festas, e também os saguões dos hotéis. Era nesses locais que, além de comer e beber de graça, nos divertíamos praticando a difusão de boatos maldosos que prejudicavam ora um indivíduo, ora outro, ora todo um grupo. Por exemplo, podíamos espalhar que a mulher do diretor Fulano tivera um caso extra-conjugal com o roteirista Beltrano; ou que o dinheiro para o financiamento do filme tal fora desviado por Ciclano para a compra de um apartamento; ou ainda que uma certa empresa havia anunciado que não mais patrocinaria o cinema nacional. No movimentado saguão do Hotel Serrano, a boataria se espalhava como fogo num monte de palha, deixando várias reputações indelevelmente manchadas.

Atacávamos todos, mas, entre as principais vítimas de nossas artimanhas estavam os curta-metragistas, e entre eles o mais visado era Manfredo de Abreu. Há quem pense que os meus ataques contra esse grupelho eram uma forma de vingança, fruto de um ressentimento atroz causado por um antigo projeto cinematográfico que eu jamais concretizara, em parte por ter sido reprovado num concurso de roteiros em que um dos jurados era justamente Manfredo de Abreu. Mas a verdade é bastante mais complexa. Em primeiro lugar, eu não me julgava sabotado por ninguém, sabia que os concursos eram assim mesmo, e se tinha ódio a Manfredo acima de todos era por sua arrogância e extrema pretensão de se tornar o maior cineasta vivo, automaticamente desmentida pela cara de boçal que escancarava toda a sua falta de talento. Em segundo lugar, eu não pretendia mais me dedicar ao cinema, arte bastarda que me parecia ter virado apenas mais um ramo da indústria. Tanto Max quanto eu reservávamos nossa admiração para artistas marginais, que não se deixavam levar facilmente pela tentação dos holofotes, e aquele Festival nos parecia pouco mais do que uma celebração vazia e sem nexo.

Já faziam vários anos que íamos ao Festival para praticar o nosso jogo — por que era um jogo, acima de tudo era apenas um inocente jogo, digam o que disserem. Mas desta vez Max estava diferente. Eu deveria ter notado antes, pois mesmo no Festival do ano passado eu tivera a impressão de que ele estava meio distraído, chegando por vezes a repetir boatos do ano anterior que já haviam sido categoricamente desmentidos. Este ano ele estava ainda pior, parecendo nem se interessar pela atividade. Havia dias em que ele sumia completamente; eu andava por toda a cidade à sua procura, e o encontrava em algum bar, rodeado de pessoas que eu desconhecia. Cansado, no antepenúltimo dia do Festival eu decidi tirar aquilo a limpo. Estávamos num coquetel, sozinhos num canto aguardando a chegada de mais pessoas. Eu o puxei para perto da janela, onde não podíamos ser ouvidos.

-- Muito bem. — eu disse. — Quem é a vagabunda?

-- Como é que é?

— Você está diferente, Max. Só pode ser alguma mulher por quem você está apaixonado.

— Qual é. Não tem mulher nenhuma.

— É um cara então?

— Puta merda, qual é a tua, meu? Que eu saiba, quem sempre teve fama de bicha foi você.

— Ninguém está a livre de rumores. — eu disse, meio magoado. Max era a última pessoa que eu imaginava que pudesse me jogar na cara aquela calúnia mentirosa. — Tudo bem, eu só queria saber. Você está estranho, só isso.

No fim da festa, talvez por sentir-se culpado, ele acabou confessando, e apontou vagamente para uma mulher ao fundo do salão, imersa num casaco de peles. Eu disse para ele ir em frente, que ela era gostosa mesmo; mas, no dia seguinte, quando ele novamente decidiu não aparecer no Serrano, eu a encontrei e me aproximei dela. De perto ela parecia ainda mais decadente e vulgar.

— Oi. — eu disse, sorrindo cinicamente. Estava um pouco bêbado, e muito irritado.

— Sim? — ela disse, sugando ruidosamente a sua bebida no canudinho.

— Pelo que vejo você gosta de chupar. — observei.

— Como é que é? — disse ela.

— Não se faça de sonsa. É você que está trepando com o meu amigo?

— Como é que é? – repetiu ela.

— Porra, você só sabe falar isso? Sua vagabunda chupadora, acorda! — e atirei o conteúdo do meu copo de vinho na sua cara. Admito que talvez tenha sido um gesto extremo, mas aquela sua cara de fuinha dopada me dava nos nervos. E afinal, como eu poderia saber que ela era uma das mais famosas atrizes da televisão brasileira, se jamais assistia às novelas? E como eu poderia saber que a história que Max contara era apenas uma desculpa, mais uma peça que ele insistira em me pregar? Quatro seguranças pularam sobre mim e me atiraram para fora, e um deles chegou mesmo a me dar um soco no olho esquerdo:

— Não aparece mais aqui, seu filho da puta.

Foi com o olho inchado e alguns hematomas que fui, no dia seguinte, ao Palácio dos Festivais, para assistir pela primeira vez na vida à cerimônia de premiação. Entrei junto com uma horda de jornalistas que, perseguindo algum famoso, cegaram os porteiros com os flashes das suas máquinas fotográficas, e talvez por isso eu não tenha sido barrado na porta apesar do aspecto medonho. Uma vez lá dentro, encontrei Max vestido com um elegante blazer, os cabelos penteados, a barba feita. Em suma, irreconhecível. Sentei ao seu lado sem dizer nada. Ele se assustou ao me ver, e acho que não foi apenas por causa do meu aspecto.

 

— Pedro! Puta merda, o que houve contigo?

-- Nada, um acidente. E com você, tudo certo?

— Pois é. Olha, eu...

— Você não imagina quem eu encontrei ontem.

Justamente nesse instante, ouvi a voz da mulher com pele de arminho e cara de fuinha. Ela estava no palco, anunciando a próxima categoria:

— E o vencedor do Prêmio de Melhor Roteiro de Curta-Metragem é... Max Carneiro, por "Perdição e Loucura", dirigido por Manfredo de Abreu!

Eu olhei para ele, ele olhou para mim. Eu não poderia estar mais chocado. Me sentia traído, ultrajado, a pessoa mais patética da face da terra.

— Desculpa, Pedro. — ele balbuciou. — Eu ia contar pra você.

Eu estava imóvel, com a boca aberta, num estado quase catatônico. Não podia acreditar que Max, logo o Max, podia ter feito aquilo comigo, ter passado para o Outro Lado sem qualquer remorso, e sem ao menos me avisar. Agora ele era um novo membro do grupo de cineastas locais que tantas vezes nós havíamos difamado juntos, agora ele era mais um e só eu restara de fora, e agora todos os boatos seriam dirigidos apenas contra mim, dizendo que eu era um bêbado ressentido, que atacava atrizes em coquetéis, que era um falso cineasta que espalhava falsos rumores.

— Tudo bem, Max. Vai lá, vai pegar o teu prêmio. E dá um beijo naquela mulher por mim.

— Cara, eu...

— Vai pegar o teu prêmio, porra!

Ele levantou, meio sem jeito, e foi para o palco. Eu abaixei o rosto e o cobri com as mãos, numa tentativa desesperada de não ver aquela tragédia. Fiquei vários minutos assim, de olhos fechados, soluçando, até que algum idiota colocou a mão no meu ombro e disse:

-- Não esquenta, meu velho. É assim mesmo. Ano que vem chega a tua vez.