ADAPTANDO UMA FÁBULA

por Gustavo França

gufran76@hotmail.com

Os adultos, categoria etária na qual todos pretendem ingressar um dia, sempre tiveram grande preocupação em passar às crianças histórias povoadas por valores diversos dos que norteiam a realidade, talvez com o objetivo de tornar a transição do crescimento um pouco mais traumática. Para tanto, criaram contos de fadas e similares transmitindo mensagens sobre temas em desuso, como lealdade e bom senso, sem contar o improvável "felizes para sempre". Todos eles contêm lições de moral que deveriam valer para o resto da vida, se verossímeis. Como de fato não o são, sobram apenas palavras no vácuo da modernidade, sem qualquer significado prático. Quando muito, renderão algumas sessões de análise a título de desintoxicação utópica.

Exemplo clássico desse complexo ilusório é o malfadado conto infantil da "Roupa Nova do Rei", em que dois trambiqueiros se aproveitam da vaidade e arrogância de um soberano para lhe vender uma suposta roupa tão especial que só as pessoas de alto intelecto poderiam ver. No final, quando o protagonista desfila pelas ruas, um menino grita "O rei está nu!", e todos concluem que se uma criança, com toda sua pureza, constatava que o monarca estava mesmo exposto em sua vergonha, é porque tudo não passava de uma farsa. E o déspota desmoralizado se recolheu ao castelo e jamais saiu de lá até a morte. Quanto aos "costureiros", deram o fora com o ouro pago em troca de seus hábeis talentos e não se soube mais deles. E todos os ministros e assessores que não ousaram admitir que não havia roupa nenhuma caíram em desgraça e foram demitidos em massa.

Até aí, nenhuma novidade. Mas, graças a louvável esforço de pesquisa em meio a um bate-papo com o velhinho da padaria, técnicos em Ciências Carochinhas decidiram dizer não às convenções e apresentar a versão não-autorizada desse embuste, desenvolvida segundo os conceitos vigentes na sociedade contemporânea, especialmente no ambiente nacional. Começando a partir do momento em que o intrépido garoto se pronuncia:

"O rei está nu! O rei está nu!"

Ao ouvir tamanho disparate, aqueles que haviam pago metade do salário para conseguir uma vista privilegiada do inédito traje real olharam o menor insolente com mortal censura. Por mais que sua mãe insistisse em tentar calá-lo, ele seguia irredutível em sua insensatez impúbere. O desfecho não poderia mesmo ser outro: foram convidados a se retirar pela Guarda Monárquica, e a pobre senhora foi multada no valor do resto de seus vencimentos. Nem assim a criança cedeu em sua insubordinação, obrigando a genitora a contratar os serviços de uma psicóloga infantil. Mas esta, passadas semanas de improdutivas terapias, só teve a lamentar.

"Sinto muito, mas meus serviços são inúteis! Ele insiste em desdenhar da rica vestimenta do rei. Creio que se trata de um Q.I. reduzidíssimo, inapto a qualquer convívio social." Desolados, os pais se viram obrigados a tirar o menino do colégio e deixá-lo em um abrigo para deficientes mentais. Bem que o marido pensou em dizer à esposa que, em sua proletária opinião, o rei estava mesmo desprevenido, mas o temor de revelar sua ignorância falou mais alto. Afinal, se a elite da intelectualidade do Reino se deliciava com as sutilezas das vestes de seu líder, quem era ele, bugre semi-instruído, para questionar o que seu cérebro não tinha capacidade de atingir?

Ocorre que nem todos tiveram a mesma autocrítica, e logo algumas levas de revoltados passaram a espalhar que a real genitália estava exposta em público. "Bando de ignóbeis!" – responderam os membros da Real Academia de Artes Dramáticas e Literárias, na pessoa do ilustre presidente que, aos 70 anos, acabara de finalizar seu primeiro romance. "Já era esperado que nem todos conseguissem compreender a beleza superior." – proferiu o Ministro da Educação. Tudo foi interpretado de forma natural, pois numa Sociedade sempre existirão os inteligentes e os menos favorecidos pela aptidão ao pensar. Mas o fato de serem minoria atestava o avançado padrão do ensino fundamental e universitário vigente. E, assim, os magistrais costureiros (que, ao contrário do que informa a fábula fantasiosa, não fugiram, mas, pelo contrário, tiveram seus nomes imortalizados), foram novamente contratados para a criação de mais um prodígio da moda para o sábio monarca.

O novo desfile foi mais um sucesso inolvidável, ainda que outro fedelho tenha desatado a falar obscenidades até ser rapidamente contido pela segurança reforçada e mandado de pronto a uma entidade criada para tratar de tal retardamento. Os críticos mais próximos ao rei julgaram o traje o máximo do bom gosto. "Quem não conseguiu captar todo o brilho e originalidade certamente não deve ser distinguido de um símio selvagem."

Como a unanimidade é incompatível com a hierarquia da mente humana, mais opositores desafiaram os neurônios para sustentar o inconcebível. Passeatas gigantescas foram organizadas, e até alguns jornais populares ensaiaram uma adesão ao movimento. Apesar do alarde, tanto o governo quanto os oposicionistas do bloco moderado foram uníssonos. "Pode-se até contestar algumas atitudes de nosso soberano, mas questionar sua inteligência refletida no vestuário é um gesto de absoluta leviandade."

Passados cinco desfiles e um aumento sensível, embora desmerecedor de preocupação, no número de incapazes de enxergar os cada vez mais bem elaborados trabalhos dos notáveis servidores, eis que uma surpresa aporta de terras distantes. Um pedido de extradição justamente contra os sumos sacerdotes da estética palaciana. Motivo: estelionato. Segundo o pedido, teriam ludibriado um imperador de outro continente, jurando ser capazes de fazer uma roupa de confecção diferenciada, mas que não passava de um golpe que levou aquele Império ao ridículo internacional. Depois de uma década tentando localizar os infratores, enfim foram descobertos em nossos domínios.

O reflexo desse incidente logo assolou as praças e meios de comunicação. Toda aquela beleza sem par teria sido uma ilusão coletiva? Como, se todo mundo, salvo os cretinos irremediáveis, havia admirado cada detalhe, por mais singelo que fosse? Teriam sido todos covardes em assumir que nunca houve nada a ser visto, a não ser a crueza de um corpo decadente?

"Sim! Fomos uns idiotas acreditando nesses fraudadores!" – disseram muitos. "E pior foi esse imbecil que gastou dinheiro público para exibir suas pelancas!" – falaram outros menos educados. "Eu sempre achei que ele não era técnico de seleção!" – sentenciou um desavisado. Desta vez o choque atingiu as estruturas de sustentação real no Parlamento, a ponto de antigos aliados afirmarem que só agora era possível constatar a reduzida dimensão do caráter de seu líder. Para complicar, os juízes da Máxima Corte que tanto ovacionaram a passarela monárquica decidiram pelo processamento da extradição, convencidos de que havia fundamentos suficientes para o pedido. O próximo passo poderia ser a deposição do rei e a conseqüente proclamação da República. E anos de prosperidade seriam jogados nos detritos da História em nome de uma histeria coletiva.

Mas, como todo conto de fadas, o final não pode ser de consternação. A esperança ainda vivia no discurso em cadeia real marcado com urgência. E como numa fábula, tudo se resolveu nas duras palavras de um chefe de Estado indignado: "Não se pode aceitar que o povo mais inteligente deste mundo achatado que conhecemos possa se curvar tão bruscamente a um pensamento estrangeiro! Se eles nada viram nos tecidos preciosos trazidos a nós graças a esses fantásticos profissionais, só pode ser um sinal de que são uns lesos corrompidos pela brutalidade das bestas irracionais! Foi por isto que, cansados da mediocridade desses países longínquos, os dois artistas aqui acolhidos escolheram nossa Pátria como lar adequado a seu trabalho de única sensibilidade, E mais grave que a incompreensão é querer injustiçá-los com essa absurda empreitada que ora chega a nossos magistrados. Por isso, visto uma vez mais a capa de guardião do racionalismo para dizer que nenhuma pressão externa denegrirá estes homens, nem esta administração! Porque a razão deve triunfar sempre!"

O dom da palavra era tão peculiar ao rei como o apurado senso de elegância. Assim, a revolta popular foi controlada e, apesar de ruidosa minoria ter continuado a afrontar os caminhos mais esclarecidos, tanto o monarca quanto seus fiéis assessores, injustamente perseguidos, deram seqüência à era de deslumbres e, sobretudo, viveram felizes para sempre!