obs: o conto não tem título. sorry, sou péssima nisso.

por Cris Lisbôa

titilis@uol.com.br

Tá frio. Muito frio. O vento faz um barulho apavorante na janela. Gotinhas escorrem no azulejo branco com florzinhas azuis da cozinha. Mas foda-se, vou sair de qualquer jeito. Essa jaqueta não esquenta lhufas, embora tenha custado um mês inteiro de salário. Três cheques pré-datados (ahhh, eu sou a rainha do pré-datado), sem entrada e com juros de 2,5% ao mês e essa porra não serve nem pra esquentar. Pelo menos é bonita. Fico com parecendo uma diva de cinema. Esse frio do caralho e eu aqui sozinha, maquiada e de jaqueta nova, sentada neste sofá marelo, enrolada numa manta e criando coragem pra levantar e enfrentar o mundo. Ora, o que me impede? Não tem ninguém pra perguntar onde, quando e como eu vou, perguntas que eu detesto por julgar desnecessárias. Desnecessário tem que ser jogado fora, não é? Desde quando me tornei desnecessária pra ti? PAM! Bombardeio. Essa doeu. Doeu como ainda dói lembrar do teus olhos. A dor vinda sei lá de onde, e a pergunta ouvida por ninguém além do meu peixe laranja me anima e lembra de que sim, estou sozinha, saio com quem quiser e faço o que der na telha sem me preocupar com repostas bestas para perguntas imbecis. Com uma inesperada coragem levanto e deixo um beijo no espelho, lembrança do sorriso que eu levava. Urru, eu sou Shira! Ai, morro de vergonha de chegar em lugares assim, desacompanhada, avulsa, como diz meu pai. Tenho certeza de que todo mundo tá me olhando. Tô linda, eu sei. Linda e com frio. Vovó dizia: tem que sofrer para ser bela. Devo ser a mulher mais bela desse mundo então. É tarde. O lugar tá fechado. Só é permitida a saída. Olho com cara de desamparada para o porteiro. Homens sempre acreditam em mulheres com cara desamparadas. Ele me deixa entrar depois de expulsar cinco pessoas que também queriam um pouco de diversão nesta noite fria. Também? Não, decididamente não é diversão que eu procuro. O balcão é pequeno é não há nenhum lugar onde eu possa sentar. O barmen me vê, chega perto, tão perto que posso sentir sua respiração. Música alta. Ele fala algo que parece ser uma promessa de conseguir cadeiras. Concordo e fico parada nesta merda de lugar com todo mundo me olhando. Saco. Devem estar se perguntando o que eu faço num lugar como esse. O tal barmen volta com dois bancos daqueles ! al! ! tos. Agradeço e sento de costas. Ele finge que não entende o meu desprezo e fala coisas que eu não quero ouvir. Não agora. Talvez amanhã ou nos próximos quinze dias. Ele finalmente entende e avisa que vai pegar uma tequila. Aproveito pra aspirar cheiro deste lugar. Parece sólido tenho a impressão de que se eu levantar a mão posso pegá-lo com as mãos. Já tomei duas tequilas e o frio ainda parece insuportável. Tenho a impressão de que não há o que me aqueça: ofrio vem de dentro. Noite besta essa. Dou uma última olhada e não vejo ninguém, embora o bar esteja lotado. Pela primeira vez olho o barmen nos olhos. Digo calmamente que preciso ir. Ele insiste que eu fique e veja o sol nascendo. Recuso e ele não aceita que eu pague as bebidas. Pede que eu volte. Sorrio e digo que volto sim, um dia. Não pretendo voltar e não escuto o nome dele. E nem digo o meu. Não é o que interessa. Vou pra única casa que considerei minha em toda a vida. Meu estômago dói. Sabia que isso aconteceria. Sabia que ia ficar com náusea e sede. Olho o céu escuro e constato que não há estrelas. Eu devia saber. Não deve-se sair quando não há estrelas. Vento. Um, dois, três trovões seguidos. Sempre me assustei com eles. Hoje queria conversar com algum. Faltam duas quadras pra chegar na ponte que divide a rua fria do meu sofá amarelo no segundo andar. A rua deserta. A alma sozinha. Tento me aquecer: me esfrego, bato os pés, me esforço pra que a boca sopre um hálito quente para que os pulsos, ao menos, fiquem aquecidos. Ele não estava lá. Eu parecia diva de cinema dos anos vinte e ele não estava lá pra ver isso. Estou sozinha, não preciso responder nada e nem esconder minha vergonha e humilhação de ninguém. Deixo que lágrimas grossas escorram pelo meu rosto gelado. Tento secar com as mãos mas as lágrimas são mais fortes. E quentes. Sigo andando. Estou sozinha e é melhor assim. Mas pelo menos as lágrimas são quentes.