Para  o  Hermano Vianna

Álvaro Magalhães
 

Esta é feita a partir do teu artigo, que é pra lá de simpático, publicado em Zero Hora intitulado “O Rio  Grande do Sul é a verdadeira Bahia”, inversão de um verso de uma canção de Caetano Veloso. Não entendo porque seria bacana ser um verdadeiro outro, no caso uma verdadeira Bahia. Não importa se somos lá grande coisa, mas ser um verdadeiro outro? Será que nós, gaúchos, teríamos que cumprir alguma expectativa posta sei lá por quem ou por quê?  Se a identidade nacional construída no século XX -  do tipo miscigenado, da raça indefinida em que cabe tudo - tem lá seus problemas, acho que os gaúchos têm pouco a ver com isso, mesmo considerando a importância de políticos como Getúlio Vargas e de seus governos.

Reli neste carnaval  o teu ótimo “Mistério do Samba”, e também revi o “Positivismo: um projeto político alternativo RS: 1889-1930”, da cientista política Celi Pinto.  Relacionando o capítulo das conclusões do “Mistério” com o artigo da ZH, fica mais clara a tua simpatia em relação à heterogeneidade cultural, ao exercício da diferença e a tuas desconfianças em relação a certas tradições unificadoras, como a construção de uma identidade cultural que procura a unificação, como a  do tipo miscigenado e indefinido brasileiro, identidade que busca incorporar os diferentes nesse tipo indefinido em que cabe tudo.

A característica gaúcha de se achar um brasileiro diferente não é nova, faz parte do mito farroupilha várias vezes reinventado, especialmente no período republicano. O gaúcho nunca se rendeu à evidência que somos brasileiros. Talvez, hoje, possamos ser gaúcho-brasileiros. Os tradicionalistas dizem que somos brasileiros por opção -  pois teríamos a opção da independência, como tiveram os uruguaios (que foram apoiados pelos ingleses). Na real - mesmo derrotados - somos irredentistas. Do charque à Ford. (A ida da Ford para a Bahia, incentivada por ACM e FHC é um forte fato regional.) Exemplo de irredentismo é uma canção nativista conhecida diz: “Não pudemo se entregá pros home; de jeito nenhum; amigo e companheiro...” (Estes versos foram escolhidos para uma canção manifesto de um “rap/milonga” bem interessante.)

Como tu sabes, o Partido Repubicano Rio-Grandense foi o único partido republicano que não era liberal (era positivista) e o único que fez um governo não-oligárquico. Getúlio Vargas e Osvaldo Aranha formaram-se em um partido que fazia do governo estadual uma administração partidária, ao largo das relações coronelistas, contruindo uma noção de interesse público acima das classes ou grupos e que procurava a incorporação de interesses particulares,  como os dos estancieiros ou dos trabalhadores urbanos. Não buscavam produzir consensos e sim um governo de elite politicamente forte (militar e moralmente) e “esclarecida”. Eram positivistas em uma região de fronteira consolidada nas armas.

O que “exportamos” para o Brasil foi uma geração de políticos que soube, em aliança, re-organizar uma república, de maneira mais eficaz do que a velha república liberal. Acho que há um exagero em afirmar, como tu fizeste, que de Getúlio Vargas herdamos a armadilha política que nos levou a inventar a identidade cultural. Ele conduziu sim uma forma  eficaz de consolidar e reinventar a república, incorporando os grupos não-oligárquicos, como os trabalhadores e os negros (ou mestiços), já que não tinha o bloqueio ideológico dos liberais oligárquicos. E a dimensão simbólica faz parte de qualquer processo histórico, sabemos. Como tu ressaltas no “Mistério”, não só o governo Vargas construiu novos mitos nacionais, mas vários outros construíram, como intelectuais e artistas modernistas antes e depois de 30.

O período 30/45 foi de  governos de uma nova aliança de elites regionais, em que despontaram mineiros como Francisco Campos e Gustavo Capanema. Para os gaúchos esse período é particularmente importante, pois, bem ou mal, firmou traços de gauchidade na identidade nacional, como uma imagem de gente “séria” da qual nos orgulhamos. Porém, como bem interpretou Raymundo Faoro,  a proeminência da ação estatal na organização da sociedade brasileira é a regra. O período Vargas foi um desses momentos centralizadores que confirma a “regra”.  Mas, por simplificação e pela construção mítica em torno da figura de Vargas, o período ficou muito associado ao gaúcho e ao gaúcho autoritário. É da vida.

A característica que nos distinguiria não seria o autoritarismo ou o elitismo - pragas generalizadas - e sim um ambiente cultural que admite diferenças e no qual há admiração por  quem luta por seus pontos de vista.  Mesmo no tempo em que os positivistas castilhistas (de Júlio de Castilhos) mandavam com força militar ao lado, havia oposição nítida  -  com conflitos resolvidos em guerras civis, como em 1893 e 1923. Quando chimangos e maragatos uniram-se aos mineiros e paraibanos, saiu o movimento de 1930. O que tu  e o Arthur de Faria vêem de forte no ambiente musical gaúcho é a diversidade,  a criatividade e a relativa autonomia cultural necessárias para chegar a um conjunto tão diverso. Bingo!

Agora, porque o jeito mineiro ou pernambucano ou amazonense de ser brasileiro incomodaria menos do que o jeito gaúcho? Porque os gaúchos fazem questão de dizer que são gaúchos? Será porque nós queremos às vezes ser diferentes do tipo brasileiro miscigenado/indefinido/malandro, etc??? Será por que fazemos diferenciações internas com mais facilidade, por que internamente admitimos uma heterogeneidade bem maior do que a dos brasileiros em geral? Por outro lado, por que fica difícil assimilar algo produzido no Rio Grande do Sul como algo brasileiro? O escritor Luiz Augusto Fischer pergunta-se, entre tantas coisas, por que expressões da literatura de ótimo nível, como Mário Quintana ou Érico Veríssimo, não são reconhecidos como autores brasileiros e sim regionais?

O mito da raça brasileira,  do tipo brasileiro miscigenado, malandro, hipersexuado, filho dos trópicos é difícil de passar aqui, no paralelo 30.  Isso deve incomodar aos que acham que todos os brasileiros tem de ser da maneira que eles acham que tem que ser. Nisso, talvez o Caetano seja dos mais ortodoxos, até mesmo mais do que Gilberto Freyre, já que a Bahia está a fundação da brasilidade, desde a arcaica até a moderna, com a (carioca) Bossa Nova. (Alguns artistas nascidos em Porto Alegre não tiveram dificuldade como o tipo e a música brasileira e são ilustres construtores  desta música. Nomes como Radamés Gnattali,  Lupicínio Rodrigues ou Elis Regina.)

Por outro lado, nós também produzimos um tipo característico, que também tenta unificar as diversas identidades em torno de si.  É curioso: o gaúcho  típico “puro” é mestiço, rural e antigo (ou tradicional). A maioria dos gaúchos acha que a paisagem típica do Rio Grande é a do pampa, do mundo rural, mesmo que sejamos predominantemente urbanos e concentrados na região Porto Alegre - Caxias do Sul, que alcança as áreas de colonização italiana e alemã. Como o tipo é folclórico, talvez facilite a afirmação das identidades dos vários grupos, principalmente as ligadas à cidade e ao não-tradicional. Mesmo assim, desde os anos 70 é comum tomar mate na cidade. A comida típica - o churrasco - é uma adaptação urbana do churrasco do campo, feito no chão e sem salada. (Aliás, o churrasco hoje não seria uma comida típica brasileira, até mais generalizada do que, p. ex.,  a feijoada?) Há uma forte produção artística ligada ao tipo gaúcho, com um circuito musical regional forte, além de um movimento tradicionalista organizado a partir da capital, por filhos de fazendeiros (ou de classe média) oriundo do meio rural,    há quase cinqüenta anos (logo depois do Estado Novo).

Por outro lado, há cerca de 15 % de negros, mas talvez com menos mulatos do que no Brasil. Para perceber o mundo negro em Porto Alegre é só vir aqui no Carnaval, já que os “não-negros”  que podem vão para a praia.  Não sei direito o que aconteceu. Os negros da Argentina parece que morreram na guerra do Paraguai. No Uruguai, os negros são poucos, e tem identidade própria em relação aos outros uruguaios (também gaúchos) e produzem uma música ritmicamente espetacular (imagino que tu conheças).  Ter uma identidade negra mais definida seria melhor ou pior? Ter um racismo mais explicíto ajudaria a combatê-lo?

Os imigrantes e colonos também são gaúchos. Há muitos brancos pobres na cidade, vindo de todas as regiões e a maioria dos não-pobres é “branca”.  Até aí nenhuma novidade. A diferença é que os “gringos” são “gringos”, os “alemães” são “alemães” e os negros são negros. Todos gaúchos. (P. ex, é comum encontrar-se fruteiras ou oficinas com nomes como “Bar do Alemão”, “alemão” que até pode tomar mate e usar bombacha em festas.)

Assim, há uma cultura regional que identifica os gaúchos dentro e fora do território, com um tipo que se pretende unificador, mas com vários grupos com identidade respeitada.  Esses gaúchos, diferentes entre si, identificam-se por novas diferenças, geralmente polarizadas: Grêmio X Inter;  PT X anti-PT (que é a  forma atual da tradicional bi-polarização política); Roqueiro X MPBista (ou MPGista) X Nativistas (os poucos “jazzistas”, como eu, nem minoria somos).  Todos brasileiros. (Nada mais ridículo do que levar a sério um tal movimento separatista que houve e virou piada.)  Mas por que isto incomodaria alguém?

Vamos ao verso do Caetano, para finalizar. Há muito que ele vem aqui e é bem recebido. Volta e meia ele ironiza e tem ataques por que ele não encontra o que ele acha que é jeito   verdadeiramente brasileiro ou moderno de ser. Um saco. Essa da “verdadeira Bahia” para o Raul Seixas (ou melhor, para um cara que tinha uma “vontade fela-da-puta de ser americano” (um outro)  ... “Nada de curuzu, a verdadeira Bahia é o RS”... ), é mais uma.

Por exemplo, no livro  “Verdade Tropical”, pg. 213/4, ele tascou: “Lupicínio foi um grande compositor, um negro do extremo Sul do Brasil - isto é, de uma área onde se pensa que a população é toda branca - ...”.   Acho que ele está por fora, não entendeu nada do “Mistério do Pampa”.

Deixa pra lá e “vai um abraço”. No mais, eu também espero que saiam do sul novidades que renovem a música popular do Brasil, que, paradoxalmente, está cada vez mais forte e mais chata.

Álvaro Magalhães

P.S. - Há um tempo atrás, trocava idéias por e-mail com o  Luis Augusto Fischer, que é ensaísta, dicionarista,  contista,  cronista e gente-fina. Ele fez a “falseta” de publicar um trecho em sua coluna no jornal ABC Domingo, que rendeu uma polêmica transcrita na revista www.nao-til.com.br .  Nela, eu arrisco observar  alguns limites da música gaúcho-brasileira, que não valoriza a música instrumental ou erudita como deveria. Figuras ilustres do meio musical,  inclusive o Arthur de Faria,  não concordaram. É assim mesmo.