NOS BASTIDORES DO FÓRUM

Marcelo Fleury
 

Fui ao Fórum movido por uma imensa curiosidade jornalística em primeiro lugar e por uma intensa falta do que fazer em segundo. Não podendo ir à praia, fui ao Fórum conferir de perto se um outro mundo é possível. Ao chegar à PUC (ou PUCRS para os mais modernos), deparei-me, logo de cara, com um indiano cor-de-laranja que me cumprimentou com o mais sincero dos sorrisos. Tomei-me de súbito por aquela sensação de união dos povos e vi no indiano não um estranho, não um estrangeiro, mas um ser humano que, sei lá porque cargas d’água, compartilhava comigo um amplo espaço e um pequeno instante neste gigantesco universo - e ainda com um sorriso no rosto. Lembrei-me de Gandhi, de Lennon e de Capão (ah, Capão, o sol, o mar...).

Senti meu espírito mais leve ao entrar no Prédio 40 e nem me importei em disputar um pequeno espaço e um amplo instante com as centenas de participantes do evento ávidos pelo elevador. Como era muita gente e pouco elevador, optei pela escada, enxergando nela não só um caminho mais rápido para alcançar a tempo a oficina sobre a Amazônia, mas todo um simbolismo a respeito dos obstáculos do dia-a-dia dos excluídos, que são obrigados a encarar os degraus da vida, enquanto o Soros vai de elevador.

Seis andares acima, vi os defensores de um novo mundo se estapearem por um lugar na apertada sala da tão aguardada oficina. Os mais fortes, mais ágeis, com mais talento para se espremer por entre os corpos suados dos adversários foram os que garantiram o direito de assistir à palestra. Fiquei intrigado com aquela disputa voraz, e mesmo prensado pela multidão aflita, fui capaz de tecer alguns pensamentos sobre a essência capitalista do homem. Me questionava, ali no meio, se a competição ferrenha e cruel que assola e divide o mundo não faz parte do próprio homem, esse animal imperfeito, quando um duro choque com a realidade - materializada numa porta de madeira (da Amazônia?) fechada bem no meu nariz - dirimiu todas minhas dúvidas a respeito da vida: somos cruéis, chatos e quando pudermos pisar no pé do próximo, pisaremos. Ou então, mesmo num Fórum Social, disputaremos a tapa um lugar na palestra e depois fecharemos a porta na cara dos excluídos, para que o ar-condicionado não escape (sabe como é, socialismo sim, mas no fresquinho).
Não me decepcionei, pois entendi que todos tiveram as mesmas oportunidades de entrar na sala, apesar de que nem todos tenham conseguido. Porém, perdi um pouco do brilho nos olhos (e como é lindo o brilho dos meus olhos) ao ver que, para entrar na sala, valeu de tudo (até dedo no olho e puxão de cabelo).

A partir daquele momento, desisti de assistir às oficinas e resolvi que mais interessante era observar as diversas culturas subindo a escada rolante do saguão. Um sopro de otimismo me encheu de... otimismo ao ver que toda comunicação é possível quando existe boa vontade em se entender. Um peruano, ao notar que uma atendente lhe prestava informações num falso castelhano (ela começava a frase com “Bueno”, continuava em português e terminava com “la escalera”), abriu mão de ser informado em sua língua para tentar entender o português mesmo, que não é tão difícil assim, ora.

Foi quando vi o Jorge Furtado a três metros de distância, de bermuda jeans, camiseta larga e sandálias, empunhando uma pequena câmera com a qual gravava tudo enquanto caminhava. Ele não me viu. Aliás, se visse não ia fazer muita diferença, já que nem me conhece. Eu, porém, resolvi segui-lo. Reparei na habilidade com que se desviava dos desatentos, sem deixar tremer a câmera, captando os detalhes dos bastidores do evento. Fui atrás, sem que fosse notado, acompanhando-o em cada travelling improvisado.

De repente, nosso editor deu de cara com o Raul Pont conversando animadamente numa roda de amigos. O ex-prefeito nem reparou durante os longos segundos em que o cineasta capturou sua imagem Que insólito: o Raul Pont não fazia idéia de que estava sendo observado a pouca distância pelo Jorge Furtado, enquanto este nem sonhava que também era observado a uma distância mais curta ainda por mim. Estava achando o fato muito engraçado até perceber que o ciclo talvez não se encerrasse ali: olhei em volta e vi um tipo estranho, franzino, desviando o olhar rapidamente enquanto escondia o que parecia ser um caderno de anotações. Levei um susto. Fui atrás, mas logo o homem escafedeu-se no meio de uma pequena passeata.

E que passeata: foi algo cômico ver o líder do protesto, um carioca de cinqüenta e poucos anos, bradar contra seu governador, dizendo “Garotinho fascista comanda tortura a guerrilheiros no Rio de Janeiro” enquanto a poucos metros dali, sob a mira de fotógrafos e cinegrafistas, o próprio Garotinho se encontrava com Olívio, num abraço sem palavras, mas com muitos sorrisos (sabe como é, socialismo sim, mas com propaganda).

Senti na pele (de novo) a competição ferrenha (de novo) do mundo capitalista (que de novo não tem nada) ao tentar fotografar o encontro dos governadores, e me senti ridicularizado e discriminado (justo no Fórum) quando os demais fotógrafos olharam para o tamanho da minha lente. Fizeram “pff” e conteram o riso. Tudo bem, os fotógrafos são uns pretensiosos, todo mundo sabe disso.

Garanti uma foto do Olívio sorvendo um mate, e saí dali direto ao bar, disposto a afogar as mágoas. No caminho, vi um político responder assim a uma pergunta de uma repórter de televisão: “É como diz o slogan, ‘Fórum Social Mundial, por um mundo melhor’”. É, quem viu o Suplicy no Rock in Rio garante que ele estava bem mais animado lá do que aqui. Ou seja, os caminhos são diferentes, mas os objetivos e os meios para atingi-los são praticamente os mesmos - tanto que, “por um mundo melhor” e “um outro mundo é possível” acabam se confundindo nas cabeças bem intencionadas dos admiradores de ambos eventos. Pelo menos no Rock in Rio eles vendiam Coca-Cola.

O quê? No Fórum também? Não fiquei sabendo, pois estava tão absorto enquanto me dirigia ao bar que, sem querer, furei a fila bem na frente de um homem de barba e boina do Che Guevara (aquela que eles vendiam nos camelôs em frente por R$ 5,00 mais uma revista Época). O cara me olhou de cima a baixo e exclamou: “Não exagera, companheiro!”. Entendi o recado - não podemos socializar nosso lugar na fila, nem com a personificação do Che Guevara.

Desisti do bar e fui direto para a sala 1, a principal, sem saber direito o que ia encontrar. Entrei bem na hora em que milhares de pessoas ovacionavam um discurso do Lula. O petista não chegava a completar uma frase e os aplausos já espocavam no auditório. Teve até um que, num excesso de euforia, aplaudiu freneticamente meras quatro palavras do discurso: “É por isso que...”. E ainda gritou: “Muito bem, muito bem!”.

Acho que fiquei uns 20 minutos ali. Não tanto pelo discurso - que, diga-se de passagem, estava realmente emocionante - mas muito mais pela curiosidade em entender porque um cara de cabelo enroladinho insistia em levantar o braço, de 30 em 30 segundos, fazendo um “L” com o polegar e o indicador, mesmo sabendo que nem o Lula nem ninguém (além de mim, é claro) dava alguma importância para aquele gesto. Sei lá porquê, mas aquilo me irritou. O Lula falava, o público aplaudia e o cara de cabelo enroladinho levantava a mão em formato de “L” lá em cima. E eu pensava: “Pára com isso, que coisa chata, ele não tá te vendo!”. Mas não demorou muito e um guri do meu lado comentou com seu colega: “Olha lá que legal!”. E nos próximos aplausos já estavam os dois imitando o gesto e rindo baixinho.
Deixei a sala no preciso momento em que Lula encerrava seu discurso e o público, de pé, saudava o eterno candidato com palmas agressivas e gritos de “Agora vai”. Era sexta-feira, dia 26 de janeiro, 15h52min. Do lado de fora, dei de cara com um imenso homem gordo segurando um cartaz bem no alto, onde se lia em espanhol o anúncio de um debate. O sujeito, por motivos desconhecidos, fazia as vezes de mural.

Desviei do cara e fui fotografar a Marta Suplicy, que caminhava esbelta pelo saguão em companhia de nosso governador. Me meti no meio da multidão de jornalistas que tentava atrair a atenção da prefeita de São Paulo gritando “prefeita, prefeita”. Não me fiz de rogado e comecei a gritar também. “Prefeita, prefeita”. Mais alto: “Prefeita, prefeita”. Não dava para ouvir. Então, bradei aos quatro ventos num único e potente grito de desespero: “Prefeita!”. Ela me olhou. Todos me olharam. Fiquei por um instante sem saber o que dizer, quando meu instinto de amor ao próximo falou mais alto: “O degrauuuu...”. E lá se foi a Marta Suplicy escada abaixo, para alegria dos fotógrafos abutres, que deliravam a cada clique de suas máquinas japonesas.

Brincadeira. A prefeita não caiu (ainda). O que aconteceu, na verdade, foi que eu fotografei a Marta e voltei para o saguão, dando de cara, novamente, com aquele homem gordo segurando um cartaz. Meu consolo foi pensar que ele não fazia isso por obrigação, mas por pura necessidade de se sentir participativo num evento tão importante (sabe como é, socialismo sim, mas todo muito tem que participar).
Enfim, gostei do Fórum. Até comprei minha camiseta “eu fui”. O que me confunde, porém, é a pregação contraditória de quem conclama, primeiro, pelo bem do mundo em geral, e só depois pelo bem de cada um em particular, mas para dizer isso disputa a socos um microfone que espraie sua voz (no sentido figurado, entendeu?). Pena foi perder a praia que, dizem, estava com mar de Santa Catarina. Mas não há de ser nada, ano que vem tem mais (o quê? Praia ou Fórum?).