Provocação: A vaca é louca?

Ney Gastal
 

Nos Estados Unidos, milho transgênico se misturou ao outro, "tradicional", e agora vai tudo para alimentação de animais. Ou alguém acha que eles são malucos de comerem aquilo? Mas, se não são, para que plantavam milho transgênico? Ora, para exportar, é claro. Exportar para onde? Para os cucarachas, que qual baratas não se importam com o que comem, é claro. Bastou uma parte ínfima do que iam mandar para nós se misturar à comida deles, e pronto, não houve polêmica: governos, indústrias, produtores, todos foram unânimes: impróprio para consumo humano; por humano, é claro, se entendendo "eles", não "nós".

Mas cuidado! Se a gente descuida, os "animais" que serão alimentados com este milho não serão os deles, nem os nossos, mas nós mesmos. Melhor ficar atento para um possível aumento na oferta de milho para exportação nos Estados Unidos. Vai prá lá, puxa prá ali, as porcarias acabam aqui.

E a vaca? A louca é perigosa, contagiosa, mata aos rebanhos e aos humanos. Mas por que? De onde saiu a epidemia desta doença, rara e circunscrita até poucos anos atrás? Da moderna tecnologia. Vaca que come pasto não fica louca, como sabem todos. E vaca comer pasto é uma espécie de determinismo genético. Escrevi "é"? Perdão, na verdade, "era". A moderna tecnologia alimenta vacas com ração, e a ração é feita em grande parte com... carne!

Aquelas ovelhinhas que se vê pastando nos campos ingleses, não estão lá só para produzir lã, nem, muito menos, para alimentar pessoas. Estão lá para virar ração de vaca. É que vaca alimentada com ração engorda mais, e mais rapidamente. Só tem tem um problema: para gerar carne, ela também consome carne. Ou seja, disputa conosco a mesma alimentação.

A idéia não é nova. Nas fábricas de galinha que andam por aí, as penosas, imobilizadas para não gastarem energia, são também alimentadas com ração animal. Ou seja, para produzir carne em 45 dias (aos 50 elas morrem, se não tiverem sido abatidas), as galinhas "modernas" comem ovelhas, misturadas com milho e soja.

Quando você come uma galinha ou vaca destas, está também comendo ovelhas e vegetais próprios para consumo humano. O paradigma (palavra detestável, mas bem aos gosto dos tecnólogos) da moderna produção rural, está em acelerar a produtidade dos rabanhos alimentando-os com proteína animal e vegetal de alta qualidade, ou seja, com comida de gente.

Para que você tenha seu filé, muita gente não pode comer ovelha. Para que você tente saborear estas galinhas sem graça, cor nem consistência, que são "fabricadas" nas linhas de montagem do que antigamente se chamavam "galinheiros", outras tantas pessoas não podem comer seu quinhão. Carne, grãos, proteínas, tudo vai prioritariamente para o gado. Gastam-se algumas toneladas de alimentação própria para o consumo humano, para gerar alguns quilos de alimento humano. Tem algo errado, é claro.

Para não falar que a pobre vaca, um ruminante feito para ruminar capim e outras forragens que o homem não consegue digerir, foi transformada em um animal carnívoro, consumindo alimentos que seu sistema digestivo não tem condições de processar direito, e sendo vitimada por doenças contra as quais não tem defesa. Resultado: a pobre vaca ficou louca.

As que não enlouqueceram, aftosearam. A febre aftosa é uma doença que não mata nem as vacas, quanto mais aos seres humanos. Quem já teve aftas na boca, sabe bem o que é. Um incômodo danado, uma dificuldade enorme em comer, mas um negócio que se cura. O problema das aftas das vacas, ou da febre aftosa, é que ela não é auto-imunizante. A vaca tem, passa para as outras, as outras passam de novo para ela, e assim por diante. Por ser altamente contagiosa, ela se espalha pelo rebanho todo, que para de comer e emagrece. É tratável e prevenível por vacina. Só que...

Tem um "só que". A batalha para salvar os rebanhos da aftosa foi dura, e passou por campanhas maciças de vacinação. Quando uma área ficava livre, a carne vinda desta região passava a ser mais valorizada. Por que? Porque as carcaças das vacas, e muito das sobras de sua carne, também são usadas para fazer ração para alimentar outras vacas. Com isto, um rebanho contaminado pode contaminar outro, geograficamente distante. Evita-se isto como? Vacinando a todos os animais. Só que, vacinando, aceita-se, preliminarmente, que o rebanho "pode estar" contaminado, e o preço da carne cai. Então ninguém quer vacinar, e a epidemia se espanha.

Vaca louca? Que nada, mundo louco, este, onde as pessoas preferem queimar a vaca inteira (que já foi alimentada com carne de ovelha e vegetais próprios para consumo humano) a vaciná-la. Mundo pirado, onde tanta gente morre de fome, mas a vaca é queimada com todas as suas carnes, sem que estas sejam distribuidas entre os necessitados. Ou alguém acha que mandando carne para a África, por exemplo, carne dessossada, iria sobrar algo para virar ração?

Nos países pobres, vaca ainda pasta, e não fica louca nem costuma ter aftosa. Apenas morre de fome, porque as pessoas disputam com ela o pasto. Nos países ricos, é a vaca que disputa a alimentação humana. Em uns e outros, organismos inapropriados para a nova forma alimentar sofrem doenças, epidemias e morte, nas vacas ou nas pessoas.

Vaca louca? Mundo louco!

Moisés, que era Moisés, se insurgiu contra este modelo quando levou os judeus para fora do Egito, há milhares de anos. Proibiu sumariamente o consumo de carne de porco (os judeus tinham grandes varas deles) não por razões sanitárias, como conta o folclore, mas porque os porcos disputavam o mesmo alimento que as pessoas, e ele sabia que em sua peregrinação pelo deserto (onde vagou 40 anos para se livrar de uma geração de escravos e forjar outra de guerreiros) a comida seria escassa. Entre carregar porcos que dividiriam o alimento com os peregrinos antes de virarem, eles mesmos, alimento, ou proibir logo seu consumo, Moisés fez uma coisa que a maioria dos tecnocratas modernos não aprendeu a fazer: calculou o balanço energético do processo, e chegou à conclusão que seria melhor deixar os porcos no Egito.

Era um sábio, coisa rara no mundo de hoje, onde proliferam os tecnocratas loucos, reponsáveis, entre outras coisas, pela loucura das pobres vacas.

Ney Gastal
gastal@uol.com.br