C’a malinha na cacunda

Um pequeno dicionário de causas de morte natural

Julio Bittner Rojas
 

 

Acordar cedo:
Já de madrugada, quando só ele ficava guardando o patrimônio do patrão, agradecia a Deus pelo sapato forrado com jornal. Era a única forma de manter-se aquecido.

Morar num barraco:
O telhado precisava urgente duma reforma. Com as chuvas, o quarto recebia seu quinhão d’água através das inúmeras goteiras. Mas ele teve a feliz idéia de cobrir a cama com plásticos. Pelo menos, dormiam secos.

Lazer de domingo:
Depois da reza, o prazer da família era comer churrasquinho comprado com vale-transporte.

Política “pé-no-chão”:
Aquele chinelo já vira dias melhores. Remendado à exaustão, apenas um grampo garantia mais algum tempo de uso.

Sorriso:
Maria acreditava na sorte. Guardava caixas vazias de produtos e todo tipo de cupom. Acreditava que, se tivera sorte de arrumar marido, teria sorte de se arrumar na vida.

Aniversário:
Naquele dia, o vale transporte faltou. Foi usado na compra de um caderno para o filho, nessas lojas de 1,99. Agora teria que ir a pé. Olhou para a rua e a rua o olhou de volta.  Só faltava começar a chover.
Pegar ônibus:
Ao dobrar a esquina viu o ônibus saindo. Gritou e correu alucinadamente para alcança-lo. O motorista percebeu e olhou pelo retrovisor. Pisou fundo.

Carteira de Trabalho:
Estendido no meio duma poça do seu próprio sangue, seu rosto expressava surpresa e terror. Na mão direita ainda segurava a velha e ensebada carteira de trabalho. O policial pensara tratar-se dum’arma que o vagabundo tentara puxar.

Transporte público:
O “Navio Negreiro” só passava lotado. Teria sorte se conseguisse colocar um pé e um braço do lado de dentro. O motorista não prestou atenção ao caminhão da prefeitura carregado com galhos de árvore. Uma forquilha encaixou com perfeição e elegância. Parecia filme americano. O galho atravessou a sacola, a marmita dentro da sacola e o coração do desconhecido. O “Navio Negreiro” não entregaria sua carga completa hoje.