A mulher empalada
  Ariela Boaventura

 


Andava em direção ao viaduto da Conceição em direção ao bairro, vindo de uma longa noite, pitando um cigarro, a roupa fedendo a cerveja derramada e a fumaça, mirava a boca escura do túnel logo à frente, o céu desbotando acima de sua cabeça, os prédios da rua Voluntários da Pátria abaixo, os hotéis onde se escondem os cafetões ou as putas ou ambos. Passos lentos de embriaguez, não tinha pressa, pestanejava de sono mas tinha a vida toda para chegar em casa, pinçou o nariz entre o polegar e mais dois dedos e assoou com gosto, o ranho saiu com cara de clara de ovo meio batida e estatelou-se contra o muro do viaduto; olhou de novo abaixo, pessoas amassadas saíam de dentro dos ônibus, as persianas rugiam abrindo-se nas janelas dos edifícios. E então, já perto de entrar no túnel, ele viu.

Parou, atirou fora o cigarro. O que era aquilo? Na quarta janela de baixo para cima, no hotel Elevado, uma grande massa branca estava grudada à vidraça fechada. Olhou melhor, era uma mulher, as tetas esparramadas pressionadas contra o vidro, o corpo conseguia se manter à altura da janela. Pescou de um bolso os óculos. "Filmes pornôs usados a partir de R$ 4,90", dizia o cartaz da janela debaixo. Os olhos pareciam estar bastante abertos, como se a mulher tivesse levado um susto e a imagem, sido congelada.

Os carros surgiam em mais quantidade, o sol já brilhava, inclusive pegava um pedacinho da parede azul do hotel. Ele voltou alguns passos para poder enxergar melhor, coçou-se e se perguntou como aquele corpo poderia permanecer assim içado. Não havia dúvida de que a mulher estava morta, a maneira como isso ocorreu é que ficava tentando adivinhar, até o sono passara dando lugar a uma cócega de subir até lá e ver a cena.

Talvez a polícia já estivesse lá. O engraçado é que ninguém entrava ou saía do prédio, estaria abandonado? Estaria ele vendo coisas? Delirium tremens? Não, estava quase sóbrio, queria era saber ou ao menos ver, quem sabe mais ver do que saber. Desceu o viaduto de novo, meio com preguiça, meio arrependido de ter olhado para aquela janela ou por não ser muito ponderado na vida.

Havia um bar quase ao lado do prédio, desses botecos que têm vidro com ovo em conserva e unhas cortadas sobre o balcão. Pediu um café. Saborearia o momento até a última gota agora, retardando seus passos até o momento do ápice. O café estava com gosto de ontem mais meia suja, tão ruim que até correu com o cansaço da noite. Pagou e saiu. Daí em diante esvaziou a cabeça de todo o pensamento e só olhava cada quadradinho da calçada de calcáreo, entrou pela porta azul e sumiu no escuro das escadas e no fedor de mijo de rato com mofo.

Encontrou um mundo de abandono ao longo dos lances de escada até o quarto andar, o elevador aparentava há muito haver sucumbido. No corredor, viu uma linha de luz que saía justamente da porta que procurava, bateu. Na certeza de ali só encontrar um cadáver, forçou a maçaneta, que cedeu macia, e entrou.

Algo manchava a vidraça, escorrendo preto, e isso saía de dentro da mulher, de debaixo de suas pernas, onde adquiria um vermelho de dar nó nas vísceras. Vomitou. Deveria estar ali há dias, pois o ar estava indeciso entre carniça e batata podre. Um pau como um cabo de vassoura era a base que sustentava o corpo. Pelo assoalho carcomido e revestido de um grosso tapete de pó, marcas de sapato e de luta. Lembrou-se de seus sapatos, olhou atrás de si, havia deixado também ele as suas marcas: já fazia, quisesse ou não, parte do que ali ocorrera.

Limpou-se e foi até a mulher, os olhos estavam de fato arregalados e o nariz e a boca, esverdeada, também estavam pressionando o vidro da janela. Um medo, de quê não sabia, fez o sangue subir às faces; ele apertou os dentes, uma forma de se controlar. A curiosidade, no entanto, ardia como se tivesse se roçado em urtigas, e então abaixou-se para ver onde entrava na mulher o pau. O local fora de tal forma arrebentado que, descaracterizado, não se entendia onde começava a vagina e se avizinhava o cu. Tal brutalidade fez com que temesse por si mesmo, levantou, não queria mais ver, queria mesmo era sair, ou melhor, nem ter estado ali, quis até mesmo ser cego para jamais ter visto, lá de baixo, aquela criatura na janela. Um tss de latinha sendo aberta fez seus culhões se encolherem. Uma buzina berrou na rua. Ele podia, contudo, escutar o próprio terror fazendo seu coração bater na garganta.

Olhou em volta, uma poltrona com as espumas desesprimidas saltando para fora do tecido sujo de tempo e de sangue; uma gaiola no chão, vazia; latas de cerveja amassadas aqui e acolá; roupas, um pé de sapato de mulher, uma meia-calça preta perto do sapato, e, na única porta que dava para o resto do apartamento, um par de pés em botas, calças jeans e um dorso redondo masculino nu, de frente para ele. O homem tinha uma lata numa das mãos e sorria.
 


Empalar é apenas uma de uma infinidade de maneiras de matar.

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