O Doutor Rui Barbosa acaba de chegar

Miguel da Costa Franco


O palco era minúsculo. D'Artagnan entra afobado, com o rosto afogueado e os cabelos revoltos, pára a um passo de Constance, procura-a pela peça com olhos cuidadosos, e depois pergunta, com desespero na voz:

– Constance, Constance, onde estás tu, meu Deus?

Constance, ali ao lado dele, não consegue segurar o riso. A platéia, por sua vez, explode em gargalhadas.
D'Artagnan espera atônito a resposta, uma pose absurda cravada no ar.

O drama não conseguiu chegar ao fim, o público não deixou. Coisas do ante-pré-teatro amador. D'Artagnan, hoje, trabalha no DMAE.

Quem me contou essa foi um sujeito que atuou na peça apresentada logo na seqüência - era um festival ginasial de teatro ou coisa que o valha - fazendo o papel de um hippie, por ser o mais cabeludo do grupo. Cabia a ele a tarefa de cruzar, volta e meia, o palco, aparentemente quando lhe desse na telha, andando gingado, o cabelo longo seguro por uma indefectível fita índia e os dedos em eterno e rígido paz e amor.

Acompanhei de perto os ensaios de um deles, um desses artistas que se entregam a papéis menores, e que como os grandes, são extremamente dedicados. O ensaio também era para um improvisado festival de colégio. O ator a que me refiro, na época, era meio gago. Fazia um papel simples numa peça de fundo histórico: oficial de gabinete do marechal Hermes da Fonseca. Aparecia na peça apenas uma vez. Adentrava-se na sala do então presidente Hermes e anunciava, após bater continência, perfilado:

– O Doutor Rui Barbosa acaba de chegar! - e se retirava, grave e servil.

Mas a gagueira o deixava em pânico. Ou o pânico o deixava gago, um dos dois. O efeito final era o mesmo.

Por meses treinou incessantemente a fala que lhe cabia. Abria abruptamente a porta do meu quarto e anunciava:

– O Dou...
E trancava aí mesmo. Ficava doido.
– Nã... Não vou con-conseguir. Pu-pu-puta merda.

Ouvia-o evoluir no chuveiro:

– O Dou-dou-doutor Rui Barbooooosa acaba de chegar. O Dou-dou-doutor Ruuuui Barbooooosa...

Sofreu. Sofreu muito, o coitado. No dia da apresentação, lá se foi ele. Seria o que Deus quisesse. Por falta de treino não o culpassem! Exercitara seu texto como ator nenhum jamais o fizera.
Não o assisti, achei melhor assim. Quando voltou, perguntei:

– Que tal?
– Mais ou menos - respondeu, agora sem gaguejar.
– Mais ou menos, como? - insisti.
– Ah! Deixa prá lá. - irritou-se.

E foi-se embora, de cara fechada. Outro sujeito que estava por lá, garboso em seu ridículo papel de pedra na peça seguinte, contou-me depois:

– Metralhou verbalmente o homem: "OdoutorRuiBarbosacabadechegar". E se mandou ligeirinho, sem nem respirar.
O "Marechal" se esqueceu das falas e a peça acabou aí.


Machado de Assis, escritor brasileiro, também era gago.
 

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