Meu dia de monstro

J. Olímpio


Meu nome é Esmênia Algowrong, tenho 63 anos.

Nunca fui daquelas mulheres que, com a desculpa do avanço da idade, justificam rabugices e vingam seu envelhecimento progressivo na aparência das mais jovens. Sempre soube aceitar bem essa coisa inevitável de ficar velha.

Depois que enviuvei – prematuramente aos 57 anos, diga-se de passagem – comecei a sentir certas revoltas interiores, uma espécie de insatisfação irritante, possivelmente gerada pela apatia sexual do meu casamento. Orestes tinha sido um marido honesto, porém, de uma libido burocrática, frustrante. Nossas relações, cada vez mais raras depois que ele fez 50 anos, não nos davam prazer; cumpriam uma função.

Orestes se foi de chofre, numa trombose intestinal fulminante. E eu passei a direcionar minha viuvez ociosa para o campo dos passatempos ditos normais, como o bingo, o crochê e o jogo semanal de tranca, esse com as amigas. Foram meses enfadonhos, de compensação inexistente e de total ausência de sentido na vida.

Outros homens?... Nenhum se aproximou, nem eu me animei a atrair alguém. Acabei assumindo uma frigidez amnésica que, aos poucos, tornou-se definitiva.

Foi então que a Rosicleide mudou-se para o apartamento abaixo do meu, após aquela ruidosa família de libaneses finalmente deixar de azucrinar o prédio. Ela trouxe uma insuportável alegria de viver e encheu os olhos de todos, com sua opulência obcena de peitos e ancas. Cada decote profundo, cada rebolado dentro das saias colantes era um acinte ao meu exílio da feminilidade.

Tentei ignorar sua presença insinuante, seus perfumes florais, sua voz melosa e suas abordagens amistosas. Tratei de ser polidamente refratária à sua vizinhança compulsória, ao seu constante estímulo à inveja e à competição. Tudo falhou.

Ela seduziu todos os machos do prédio, mesmo que jamais os tenha recebido em casa. Do síndico ao porteiro, do zelador ao mais idoso morador – um decrépito ex-ferroviário devidamente exaurido de testosterona – todos, literalmente, tornaram-se virtuais protetores de sua figura de balzaquiana feliz. Nenhum deles admitia críticas, reservas ou comentários desairosos sobre “Rosi”, como passaram a chamá-la. Era como se os homens do edifício estivessem hipnotizados por aquela cabeleireira fútil, visualmente disponível mas inacessível, aquele poço de luxúria ambulante que varava os corredores tagarelando em voz alta com todos...

Até que, numa noite abafada de outono, Rosicleide chegou acompanhada. Subiu os três lances de escada entre agarros e gritinhos abafados, com um sujeitinho feio, entroncado e de cabelo oleoso. A porta bateu seca e eles não perderam tempo.

Eu já ia me deitar e os tinha visto por acaso. A voz dela foi ardendo em meus ouvidos, à medida que subiam os degraus. Depois, já se atracando com o estranho, arfava e gemia sem medo de ser ouvida pelos vizinhos. Parecia querer mesmo que a ouvissem, principalmente eu.

Fui ficando injuriada com sua desfaçatez, sua escandalosa exibição de fogosidade; último despeito para com meu isolamento. Como não bastasse o meu retiro sexual forçado, o completo desprezo que eu merecia de casados e descasados, agora ela o escrachava agressivamente aos olhos dos vizinhos.

Os gemidos ficavam mais fortes, eu quase podia vê-la sendo possuída pelo nanico gorduroso. A imagem se formava à força em minha mente, violentando meu deserto de sexo e contaminando a minha noção de amor. Passei a sentir o cheiro da pele suada deles, a escutar os ruídos dos dois corpos lubrificados em atrito prazeroso.

Cadela de uma figa! Ah, se eu pudesse dar-lhe uma sova de pau!... Não aquele que sua carne úmida engolia a cada arranco do parceiro, mas um porrete de bom tamanho!

A exibida gritou bonito para gozar e o meu cálice transbordou naquele orgasmo desabrido. Acabou-se a minha tolerância, esgotou-se a minha caridade, sumiu todo o vestígio de humanidade que os meus achaques de mulher envelhecida já tinham reduzido drasticamente.

Quando escutei o garanhão de ocasião sair do prédio e pegar seu carro barulhento, minha decisão se tornou obsessiva o bastante para me arrancar da cama, enfurecida. Escolhi a faca de lâmina mais longa, na cozinha, escondi no robe e desci a escada decidida. Como eu pensava, a porta dela ainda estava destrancada. Entrei sem acender a luz, fui até o quarto sem quase respirar. Mas o cheiro deles ainda saturava o ambiente. Um motivo a mais para me indignar e incentivar o meu ato seguinte. Ainda cochilava. Antes que ela pudesse reagir, atochei o travesseiro livre em sua cara até que parasse de se debater. A surpresa e o esgotamento recentes diminuíram consideravelmente sua resistência. Só uns esperneios erráticos, uns grunhidos engasgados. Com dois minutos de asfixia, afastei o travesseiro e encarei seu rosto já relaxado, o cabelo tapando metade daquela cara sem-vergonha. Ainda estava nua. Arrastei seu corpo até a janela do quarto, arranquei os pingentes da cortina e atei um em cada tornozelo dela. Joguei cada ponta livre por cima do trilho metálico da janela e comecei a tracionar, uma por vez e bem afastadas. As pernas dela subiram abertas, fazendo seu traseiro ficar no quadro da janela.

O corpo já estava a meio caminho, só com a cabeça, os ombros e os braços ainda apoiados no assoalho. Mais um esforço e apenas as mãos da bisca tocavam o chão.

Saquei a faca do bolso do robe. Olhei a sirigaita de alto a baixo, escolhendo por onde começaria a retalhar. Mesmo morta, sua exuberância me despeitava. Os seios (mais firmes do que eu imaginava) empinados por força da posição invertida, as coxas começando no quadril bem feito e terminando em pernas sem varizes.

Lembrei do meu tempo no sítio, onde vovó me ensinou a carnear caça selvagem. Meu avô sempre trazia pacas, capivaras e tatus...
 
 

***

Uma hora e meia depois, terminei o serviço. Ensopei as mangas do robe no sangue dela, mas caprichei na tarefa.

Quando o dia amanhecer, da rua vai se poder ver - em plena janela - um espetáculo inédito: entre as pernas escancaradas de Rosicleide, a cabeça enxertada até o queixo; a boca à altura da vulva, o nariz quase no ânus. As mãos eu reservei para montar dois sinais pornográficos, um em cada canto da janela.

Deixo este bilhete para a Polícia, para poupar investigações inúteis e antes que o gás do fogão sature meus pulmões. O Inferno será um local mais tranqüilo para mim, que pude odiar tanto.
 
 

O sangue é um alimento rico em proteínas.
 
 

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