Hora do adeus
por Miguel da Costa Franco


Tombadeiras descem a ladeira em que resido, levando os restos de uma morada já despida de seu antigo glamour, de seus adereços e cortinados, de seus brilhos e dos seus ruídos de criança e cachorros e portas batendo ao vento. As paredes antigamente bem cuidadas mostram agora suas vísceras ferruginosas e contorcidas, seus contornos rompidos por britadeiras ensurdecedoras, as janelas já sem postigos, com vidros quebrados, as vigas adernadas perigosamente como um navio que naufraga ou um galho que tomba da árvore ainda robusta.

Homens despudorados rompem suas entranhas, desdenham de suas escadarias enceradas anos a fio por pencas de Marias e Joanas e Marlenes e Das Dores, riem de uma bóia de patinho que ainda aguarda o verão junto à piscina, pisoteiam sem piedade o jardinzinho antes bem cuidado, com begônias coloridas e filodendros e schifreas variegatas.

Da calçada em frente, corre um rio de água barrosa, que brota do chão como se fora o sangue de uma ferida aberta ainda há-pouquinho, viscosa e tríste. Os homens não esboçam providências, deixam que se esvaia aos poucos essa casa ainda ontem vivinha da silva e aconchegante e ensolarada.

Tento distraí-los. "Há um resto de pudim no forno da cozinha", grito. Mas ninguém me ouve sob a parafernália rouca das máquinas mortíferas que lhe corrói os pisos de ladrilhos desenhados. Ninguém sente mais os cheiros incomparáveis que se espalharam tantas vezes pelo bairro vindos dessa cozinha de azulejos brancos com florezinhas azuladas: pães doces, cucas, bolos, pães de queijo, tortas de maçã e canela, bananinhas carameladas. Que nada! Essa cozinha abriga agora apenas um fogo de chão, que mancha de fumo negro o teto claro enquanto aquece duas ou três marmitas judiadas, de homens aleatórios, de vidas igualmente provisórias. É uma cozinha já sem concretude, sem garbo, sem futuro, sem cheiro de manjericão ou tempeirinhos, sem panos pendurados ou colheres de pau descansando na borda das panelas.

Também sem compostura estão as grades adornadas que cercavam essa cidadela de gnomos, essa jaula às avessas - agora estripada e rota -, com vãos e dobraduras que desmascaram sua antiga pompa pretensiosa de guardiã de todos os medos diurnos e noturnos.

Essa casa velha já perdeu a hora. Os homens, agora, querem apenas destruí-la. É seu metiê, seu propósito de vida. Me enraiveço e cantarolo com saudade para essa casa pela qual passava sempre mas nunca de fato conheci e para esses homens que a fazem cair de joelhos: "éramos nós, estreitos nós, enquanto tu um laço frouxo, tira as mãos de mim".

Seu número identificador - carteira de identidade, seu rosto civil - resta como inútil e solitário quixote colado a um naco de fachada que já não tem mais o respaldo de salas de estar e banheiros, dormitórios e quintais, de lençóis secando nos varais ou mulheres costurando na varanda. Esse número cromado voltou a serapenas coisa, sequência de nadas, quantidade, medida, lista.

Penso que algum dia os gigantes de concreto e vidro que ocuparão essa guernica aqui vizinha estenderão seu braço de sombras sobre a nossa morada, semeando nela o frio sepulcral dos sóis ausentes e despejando sobre nosso telhado, hoje avermelhado e reluzente, o bolor verde da desistência. Voaremos forçados para uma dessas gaiolas tristes, povoada de passarinhos cada dia mais bicudos, por que já não teremos ganas de fugir dessas lanças pontudas e reluzentes de metais e granitos e vernizes que brotam de todos os lados, escondendo a paisagem e deixando a vida cada vez menos planura, mais erupção. Ou simplesmente porque já não haverá planície.

Adeus, Vila Mariana.

Se assim, um dia, com amor e respeito te batizaram, é pelo teu nome de morada - não de pedra e pó - que eu te digo adeus.
 

Miguel da Costa Franco
mig@portoweb.com.br
 


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