Agonia da incompletude
por Miguel da Costa Franco

Era fim de dezembro e um perfume de uvas maduras invadia meu cantinho de pensar. Eu estava padecendo da agonia da incompletude, se é que existe essa palavra, uma espécie de angústia que me abatia ciclicamente, amenizada apenas pelo ato de escrever. Um tipo de insatisfação com a vida, como se em algum ponto do caminho eu tivesse errado a encruzilhada e já não desse mais tempo de cumprir o sonho juvenil de ser escritor. Precisava, então, exercê-lo um pouco, ainda que leitores não tivesse e não acreditasse contribuir com qualquer um o simples fato de dividir minha agonia.

Tinha a ver com o tal espírito natalino, sim, e com seu entorno fatídico: relações familiares que se revelam excessivamente distantes, incompreensões, inseguranças, imagens corrompidas que descobrimos em nós mesmos ou nos outros. Mais: pessoas nos vêem macambúzio e pensam ter a solução instantânea. E em pouco, ardis de sedução passam a revolutear ondulantes sobre mim, logo eu que queria ficar apenas quieto no meu canto. Para completar, o vinho não era essas coisas e a champanha estava quente.

Anseio por dormir, jogar fora os malditos cartões de boas festas que me dizem pouco: empresas com interesses precisos, consultores picaretas, lojas a fim do meu dinheiro. Tantas agendas, aquela pulseira inútil de couro, um relógio a mais, como se o trabalho morrinha da repartição me fosse central na vida, o passar das horas divertido e fácil e mais algemas fossem necessárias para me cortar os movimentos naturais.

Desconfio do amor que me consola, do abraço que forçosamente me despejam sobre os ombros, da minha capacidade de levar a vida em paz até o fim dos dias.

Alguém chama por Ruth e eu fico aguardando o cheiro acre de um arroto, que obviamente acompanha esse nome tão sonoro apenas em minha imaginação. Ela vem, ciente de sua naturalidade excitante, sacode os cabelos encaracolados, com mechas pintadas aqui e ali de um lilás profundo, e despeja sobre mim um olhar enigmático, entre a doçura simples e o flerte debochado. Inerte que estou, e paranóico, e enredado por mil ardis de um passado excessivamente confuso, tomo aquilo por desprezo adocicado pelo tal espírito natalino e não deixo acender-se em meus olhos o facho que sua luminosidade promete arrancar do pobre incauto atravessado em seu caminho.

Transpiro. Penso em bater uma punheta no banheiro ao lado, que comê-la, é certo, nem pensar. Arrisco pousar meus olhos caninamente nos seus. Mas ela já passou por mim e arremete seus seios pontiagudos para voz que a chamara. Ruth era assim: direta e rápida. Jamais terei seus olhos outra vez pousados em mim, penso. Ouço-a rir, vejo-a dançar com graça, alternando o samba com movimentos de um robô que, evidentemente, aprendera muito sobre o sexo.

Tento esquecê-la. Encontro um pouco de champanha no balde de gelo, agora pura água. Sirvo um cálice mais e sorvo um gole curto, que implora para ser o último, tantos foram os anteriores.

A morena gorda que dança com ela não tem graça nenhuma: é formal e desengonçada. Dessa esqueço rapidamente. Ruth, chamam outra vez: todos a querem.

Sorri radiosa e dispara pela porta da cozinha. Sinto mover-se o meu pau em direção ao meu joelho esquerdo. Vai demorar a alcançá-lo, penso. E consigo rir. Desato a rir, é verdade. Rio como nunca. Rio, rio, rio. Percebo que outros começam a rir a minha volta. Riem de mim. Riem comigo. Imagino que soubessem o motivo e disparo a rir mais ainda. Contagio a todos, que gargalham trepidantemente pela sala toda.

Ruth volta, quer saber o que se passa. Enquanto todos riem, seus olhos ávidos por saber tudo são os únicos que percebem o volume em minhas calças. Abre um sorriso tímido, seus olhos luminosos arriscam um piscar nervoso. Ela cora, mas segue esboçando um sorriso tímido e olhando meu pau, que seguia lentamente seu destino perna afora. Acho que corei, também. Mas rio mais ainda. E ela começa também a rir, a gargalhar, choramos de tanto rir. Ri a sala inteira.

Percebo agora - não lembro se antes estavam assim! - seus mamilos marcando presença na blusa de malha de losangos coloridos. Imagino que umedeceu-se toda, de repente, e sinto eu também umedecer-me aos poucos.

A morena gorda grita desesperada, enquanto gargalha, mas do que é que estamos rindo, pelo amor de Deus? Nossos olhos se cruzam outra vez – os meus e os de Ruth -, como eu pensara que jamais fosse acontecer. Suplico com os olhos em cunha que não me delate. Ela ameaça abrir os lábios, de forma que só eu perceba, e põe-se a rir mais ainda. Ninguém dá resposta à gorda. As pessoas agora passam mal de tanto rir. Parem, suplica um, parem.

Levanto-me apressado, como se fugisse. Passo por ela e sinto seu perfume de floresta. Minha ereção já é impossível de esconder, mas ninguém vê. Ruth vem atrás de mim, e tem um olhar guloso. Alcança-me no corredor e me entorpece com um beijo inesquecível. Sua mão astuta avançou indecorosa, enquanto me beijava. Acho que nós dois gostamos. Mas só ela teve certeza.

Ou esse sentimento também é parte da tal agonia da incompletude
 

Miguel da Costa Franco
mig@portoweb.com.br


 

<< NÃO 76 >>