DÚVIDAS SOBRE A VERDADEIRA DÍVIDA

por Giba Assis Brasil
giba@portoweb.com.br

(a partir de mensagens trocadas com
João Carlos Barê Junqueira, Ana Elusa Rech e outros)


A primeira vez que li o texto A Verdadeira dívida (às vezes identificado como "A Dívida externa da Europa" ou "Índio não quer mais apito") foi em junho de 2002. Ele me chegou por e-mail, sendo apresentado como a transcrição de um discurso do cacique indígena Guaicaipuro Cuatémoc em uma reunião de líderes de governo na Europa. E me seduziu, é claro, porque é uma excelente idéia bem desenvolvida: se a América Latina deve à Europa, a recíproca também é verdadeira; se a nossa dívida é enorme e, a essa altura, impossível de ser paga, a deles é imensamente maior e quase incalculável. A única diferença é que, quando do endividamento do terceiro mundo, chama-se financiamento ao que na verdade é a velha usura; antes, quando os recursos naturais do novo mundo foram "transferidos" para a Europa, entre os séculos 16 e 18, não se chamava empréstimo, mas colonialismo, ao que na verdade era roubo puro e simples. A conclusão é velha e óbvia como as bases do marxismo: o arcabouço jurídico do capitalismo, que permite a cobrança de juros na transferência de recursos entre as nações, só é possível sobre uma base histórica de banditismo. CQD.

"A Verdadeira dívida" é um lúcido ensaio sobre a dívida do terceiro mundo e sua impossibilidade lógica, podendo inclusive ser aplicado aos países da África e Ásia sem grandes modificações. E se torna mais atual no momento em que novos governos latinoamericanos (em especial o brasileiro) têm o respaldo social e a oportunidade histórica para questionar todo o sistema que gerou a tal dívida que nunca vai ser paga. O problema é que, da forma como me chegou às mãos (da forma como vem circulando na internet), é evidentemente uma peça de ficção.

A maioria das mensagens que espalham o texto, e dos sítios que o reproduzem, não diz que reunião foi esta em que o discurso foi pronunciado. Trata-se simplesmente de uma "reunião de cúpula realizada na Europa", ou especificamente "na Espanha". Alguns, no entanto, localizam-no na "conferencia dos chefes de estado da União Européia, Mercosul e Caribe", realizada em Madri em maio de 2002. Outros indicam uma "reunión de Jefes de Estado de la Comunidad Europea" que teria ocorrido em 8 de fevereiro de 2002. A fragilidade dessas e de outras versões é que o mesmo texto, com mínimas variações, circula pela Internet há bem mais tempo. Há, por exemplo, uma versão em italiano que foi publicada em outubro de 2000.

O nome "Guaicaipuro Cuatémoc" tem hoje (dezembro de 2002) mais de 800 referências indexadas pelo buscador Google. No entanto, TODAS dizem respeito ao texto "A Verdadeira dívida", em diversas línguas. Nada sobre onde teria estudado esse engenhoso e culto cacique, conhecedor da história da Europa, capaz de citar ironicamente o economista Milton Friedman e até mesmo de produzir trocadilhos associando o plano Marshall (1947) ao soberano asteca Montezuma I (1390-1469).

Antes que alguém me acuse de preconceito ("por que um índio não poderia ser culto e inteligente?"), insisto em que a minha dúvida é de outra natureza: por que esse ser humano singular nunca foi visto ou ouvido em qualquer outra ocasião além desse único discurso magnífico?

O próprio discurso parece interrompido, o último parágrafo dá a impressão de conduzir a uma conclusão que não chega a ser enunciada. Na verdade, existe um parágrafo adicional, que eu só encontrei em umas poucas versões em espanhol e italiano, e que conclui o texto, embora tornando-o, para nós, ainda mais obscuro:

"Dicen los pesimistas del Viejo Mundo que su civilización está en una bancarrota tal que les impide cumplir con sus compromisos financieros o morales. En tal caso, nos contentaríamos con que nos pagaran entregándonos la bala con la que mataron al Poeta. Pero no podrán. Porque esa bala es el corazón de Europa."

Que poeta será esse cuja morte o cacique lamenta? A que "bala" ele está se referindo? A impressão que dá é que o texto é um pouco mais antigo do que tem sido anunciado. A dificuldade de entender, aqui e agora, as circunstâncias em que ele foi escrito poderia ter levado algum copista a eliminar o parágrafo "confuso", deixando o texto inacabado, porém "atual".

Guaicaipuro (ou Guacaipuro) foi realmente um cacique venezuelano, líder dos índios teques e caracas, e um dos maiores opositores à ocupação espanhola, mas viveu no século XVI, portanto dificilmente teria participado de algum encontro de chefes de estado europeus, e muito menos discutido os 500 anos de dominação européia sobre a América.

Em dezembro de 2001, na comemoração dos 433 anos da morte do cacique Guaicaipuro, seus "restos mortais" foram simbolicamente depositados no panteão nacional da Venezuela. Coisa do governo Chávez, sua mística índia, "bolivariana", etc. O irônico é que, hoje, um dos grandes opositores a Chávez se chama justamente Guaicaipuro Lameda, ex-general de brigada e ex-presidente da Petróleos de Venezuela (a Petrobras deles), afastado do cargo e do exército em 21/02/2002.

Cuauhtémoc (ou Cuauhtemotzin, ou Guatimozin, 1502-1525) foi o último dos imperadores astecas, sobrinho de Montezuma II (1466-1520), tendo sido aprisionado, torturado e finalmente assassinado pelos espanhóis em 1525. O nome é bastante comum no México, é só lembrar do ex-prefeito (1997-99) da cidade do México Cuauhtemoc Cárdenas ou do jogador de futebol Cuauhtemoc Blanco, atacante da seleção mexicana.

Ou seja: o autor do texto certamente fez uma síntese entre dois nomes simbólicos da resistência latinoamericana aos europeus, um venezuelano e um mexicano, para criar o seu mítico herói indígena que vai à europa cobrar "a verdadeira dívida". Podemos e devemos admirar o texto, mas não precisamos acreditar na ficção. Mais do que isso: quem escreveu o texto obviamente jamais pensou em apresentá-lo como verdadeiro, coisa de que se encarregou a comunidade "corta-e-cola" da internet.

A questão é: quem escreveu? Confesso que cheguei a pensar que era coisa do Eduardo Galeano. Mas, em uma única fonte, o texto é atribuído a um certo Luis Britto García, "periodista mexicano", e também é dito que se trata de uma "carta publicada en El Nacional de Caracas, el 18 de octubre de 1990."

Bom, Luis Britto García não é um jornalista mexicano, mas um escritor venezuelano, nascido em 1940 e com vários livros publicados, de contos ("Rajatabla", 1970), teatro ("Venezuela tuya", 1971), novela ("Abrapalabra", 1979), textos de humor ("Me río del mundo", 1981), ensaios ("El imperio contracultural: del rock a la postmodernidad", 1990), etc. Li rapidamente alguns textos dele na Internet e o estilo confere, diria que é bem provável que ele seja realmente o autor do texto e o inventor do personagem Guaicaipuro Cuatémoc.

Mas o mais incrível de tudo isso é o tamanho e a dispersão da Internet. É possível achar todas esses dados com poucas horas de pesquisa no Google ou similar, mas a quantidade de informação errada que se encontra no caminho é de espantar. Sem brincadeira, são mais de 800 páginas, em português, espanhol, italiano, inglês e alemão, que simplesmente transcrevem o texto como se ele tivesse sido realmente pronunciado por este tal cacique - mas sem se preocupar em dizer, ou ao menos perguntar, de onde ele veio, que reunião era esta, o que ele fez depois de ter dado esse discurso, em que reserva ele mora, em que escola ele aprendeu (erradamente) a fazer cálculos de juros compostos. É tão fácil "copiar e colar" (e acreditar) que o pessoal simplesmente se esquece do resto.