A GUERRA DO JÚNIOR
por Ariela Boaventura
 
 
"Todos os dias morrem, no mundo inteiro, 30 mil crianças de fome e doenças provocadas pela pobreza; o número é equivalente dez vezes o de mortos no atentado [11 de setembro." (Trecho de "Showrnalismo, a notícia como espetáculo", José Arbex Jr.)


Nunca houve uma guerra como esta que estamos vendo. As outras não foram melhores, nem piores, porque guerra é sempre como briga de vizinho: uma tolice, uma falta de elegância – uma estupidez, em suma. Mas esta é uma guerra totalmente diferente de todas jamais vista pela humanidade. Primeiro, porque não é uma batalha somente contra uma nação, o Iraque, ou contra Saddam Hussein, o Grande Satã, a encarnação do Mal; muito menos pelos poços de petróleo daquela região. Não é uma guerra com começo, meio e fim. Ao mesmo tempo, é a guerra mais convencional jamais feita contra um inimigo nada convencional.

Quando aqueles dois boeings se chocaram contra as Torres Gêmeas, destravou-se o gatilho para justificar uma ação em resposta em qualquer lugar do mundo. Júnior disse, numa nítida manifestação de onipotência infantil, dedinho em riste: “Quem não me apoiar, está contra os Estados Unidos”. É como aquelas mulheres birrentas que dizem ao marido: “Se você não largar o futebol, você não me ama”, e todos sabemos que essa condicional não faz o menor sentido, o futebol mora em um lugar de seu coração, sua mulher [talvez] em outra.

O gatilho que foi destravado é o mesmo que ocorre no câncer. O bicho está lá no seu organismo, quieto e inofensivo. Então, o cigarro, o refrigerante, os enlatados, as salsichas e outros embutidos ativam gatilho, o câncer se manifesta. Os atentados no World Trade Center foram esse gatilho. Os três mil mortos no atentado serviram como justificativa para qualquer tipo de retaliação. Morto nenhum reclama.
E então começou a guerra, no dia 12 de setembro. Mas quando se faz uma guerra é contra alguém. Nesse caso, a primeira retaliação foi contra Osama Bin Laden, depois se estendeu a algo mais, uma entidade invisível chamada Terrorismo. Sabemos que o terrorismo existe, mas só vemos suas manifestações. É como Deus para os que crêem. Ou como aquela outra entidade, o Estado, que emana deveres e tem poder de sanção física, e a gente obedece. Mas ninguém sabe qual é a cara do Estado, nem quem é Deus: de um só se sente suas ações, ao outro se atribuem ações e milagres; de ambos se conhece alguns de seus representantes - o Lula, o Papa, o padre, o juiz, o deputado. (Eu ia dizer os policiais, mas hoje gente não sabe de que lado eles estão.)

A segunda diferença dessa guerra é que ela é não apenas ao vivo, como a do Golfo em 1991, mas tem ampla cobertura jornalística. De um lado, jornais, revistas e TVs de boa parte da Europa, totalizando mais de 1,2 mil jornalistas; de outro lado, a imprensa servil dos Estados Unidos, que apelou para a censura e perdeu completamente a noção da tal imparcialidade, tão preciosa à escola do jornalismo americano. Já disseram que a imprensa é o espelho da sociedade que ela representa. Já ouvi também (em vários filmes de Hollywood) que os Estados Unidos são a pátria da democracia, o país da liberdade de expressão. Não é isso o que se vê. E se a imprensa dos Estados Unidos está se autocensurando e sendo caudatária com o governo é porque nem o país é tão democrático assim, tampouco sua sociedade tão livre quanto o cinema nos faz crer. Não é possível que de um dia para outro a imprensa fosse mudar tão radicalmente.

Mas não são só os jornalistas ocidentais que estão presentes nessa guerra, que também é uma batalha de informação. Há todo o diferencial das TVs árabes Al Jazeera, Abu Dhabi e Al-Arabia, que mostram o contraponto, o resultado nada asséptico das explosões de fogos sobre o Iraque, com crianças, soldados (iraquianos e americanos) mortos, pessoas famintas, pessoas desesperadas e despedaçadas nos hospitais. Essa é a guerra mais próxima da realidade, mais para Costa-Gavras que para Spielberg. Essas são cenas que a CNN não mostra. Mas a estas imagens Júnior, sempre birrento, tasca o epíteto de propaganda do governo iraquiano, de contra-informação. Certo é que há muita contra-informação nesta guerra. Entretanto, se é para fazer espetáculo, se o show é para valer, então não venha o Júnior achar que pagamos entradas para Disney.

James Bond – Falando em ficção, um dos confrontos contra o exército do Iraque chamou-se "James Bond", o nome do detetive dos filmes de ação que jamais perde uma missão, que não quebra uma unha nas suas missões e que sempre mostra um aparato tecnológico incomparável com a realidade – sem contar as belas mulheres. Na TV, vi um empolgado soldado da chamada "coalizão" imitando, no gogó, uma metralhadora, feliz da vida – afinal, ele está salvando o povo daquele país. Algumas tomadas de acampamentos militares, tropas e tanques se movimentando são de cinema; vi uma inclusive em contraplongê. Essa guerra parece ficção, parece que os americanos que estão no front estão encenando para aparecer num filme. Parece que eles não têm idéia do que seja a realidade e para que servem fuzis e bombas, porque na realidade, fuzis e bombas matam. Mas talvez eles estejam acostumados demais com armas e tenham perdido esse estranhamento. Ou talvez tenham visto filmes de guerra demais com final feliz e vitória garantida.

A principal diferença dessa guerra, porém, é que milhões de pessoas possuem acesso a Internet. Vale lembrar que os Estados Unidos perderam a guerra do Vietnã graças à pressão da opinião pública, alimentada pela mídia. Através da rede mundial de computadores circula uma quantidade incomensurável de informações, a qualquer hora; blogs informam da angústia que se passa na cabeça de alguns soldados americanos, das dificuldades enfrentadas por um iraquiano. É verdade que a Web aceita de tudo, mas também é certo que ela interliga desde pacifistas aos pró-guerra; por e-mails, ajuda a organizar passeatas e a difundir notícias em tempo (quase) real. Hoje, a Internet é o meio de comunicação mais utilizado depois da TV e do rádio.
O videofone também é um avanço, mas nem tanto. Eu acho uma chatice ver a imagem truncada, o repórter se mexendo por etapas, parece que o cara tá passando mal. Tudo bem que se possa carregar aquela tralha para lá e para cá, mas - sinceramente - raras são as imagens por videofone que não sejam apenas o repórter falando em primeiro plano. Se a grande recompensa foi ouvir em tempo “real” as sirenes do toque de recolher, acho que esse aparelho merece ser aperfeiçoado, ou as bandas de transmissão alargadas. Bom seria se o repórter pudesse sair com o bicho pendurado, móvel, mostrando as ruas, as pessoas, os ataques. Mas bom mesmo será o dia em que o videofone se tornar robô e substituir o repórter no campo de batalha. A gente já é quase um, mesmo.

De acordo com o jornalista brasileiro José Arbex Jr., em seu libelo contra o telejornalismo como circo da notícia, "Showrnalismo, a notícia como espetáculo", a Casa Branca não apenas utilizou os mortos no WTC como veículo mobilizador da opinião pública, a fim de legitimar um ataque ao "terror", como também não permitiu a divulgação de imagens dos cadáveres. A justificativa não residiria no bom-senso ou na ética, como alegaram as suas redes de TV, mas no único motivo de que as imagens dos mortos poderiam evocar na população o massacre do Vietnã. Isso, segundo Arbex, poderia atrapalhar a estratégia de mobilização militar e patriótica causada pela comoção. E isso não seria bom para Júnior. Talvez se o pessoal da Flórida tivesse tido paciência para contar os votos, na última eleição presidencial, essa guerra não existisse.

Contudo, essa guerra, embora pareça diferente de tudo o que já ocorreu no planeta, um conflito realizado em nome da paz, pode ser semelhante à Primeira Guerra Mundial, aquela chamada "A última das guerras". Quanto à Segunda Guerra, não há, pelo menos até o momento, e espero que jamais tenha, nenhum parâmetro que se iguale em atrocidade, com um total de 55 milhões de mortos (mais de 20 milhões da União Soviética). O conflito atual tem elementos necessários para ser uma saga como a do Vietnã, que foi fundamentada contra o Comunismo – nesta, é contra o Terrorismo. A propósito, uma das alegações para essa invasão ao Iraque é a de se instituir por lá a democracia.

Júnior, ademais, já admitiu duas coisas: que a guerra pode ser mais longa do que ele imaginava [se é que ervilhas têm imaginação] e que, após ganha [ele não admite a derrota], a batalha se estenderá para onde sua intuição apontar como o "eixo do mal". A sua cabecinha, com aqueles olhinhos tão miúdos quanto o tamanho de sua inteligência, está tramando alguma coisa para que ele, Júnior, continue o dono do mundo, característica que, antes dele, foi de dois ex-líderes derrotados, um francês e um alemão.

Caso esse panorama se confirme, será o caos na economia mundial. E ai de nós. Segundo o historiador Sergio Abranches, "se a tomada de Bagdá significar apenas o começo de uma longa guerra, estaremos diante de um cenário de enorme incerteza e alto risco de instabilidade crescente da (des) ordem mundial". Para Abranches, Bagdá pode ser uma primeira estação de uma vasta guerra pela hegemonia mundial [e não por petróleo, como muita gente ainda insiste em acreditar].

A fé de Júnior é inabalável. Além de rezar todos os dias para o seu Deus, todos os dias ele come muito pretzel e, pontualmente, às seis da tarde, sob um certo ângulo do sol, ele vira a bunda para Meca e solta um surdo: Buuuush. Não bebe mais álcool, senão não pára; a propósito, virou crente exatamente por causa desse problema. Para completar, cercou-se de colaboradores tomados, como ele, de fervor evangélico. Todos encasquetaram que têm por missão salvar o mundo. Eles rezam pela manhã, ao meio-dia, ao jantar e na hora de dormir; lêem a Bíblia aos domingos ou para saber que tempo vai fazer hoje; eles dizem que quem não acredita em Jesus não vai para o céu, que foi Adão e Eva que deram origem à humanidade e que o inferno são os outros. É tudo muito bonito, o único problema é que ninguém pode discordar deles. Bem parecido, aliás, com os que eles chamam de inimigos, os fundamentalistas.
 


Ariela Boaventura <mozarela@hotmail.com>