NUMA MACIEIRA AZEDA
por Laerte Braga
 

O que vale é a versão, sempre a oficial. A verdade, o fato, tem pouca relevância e em determinados momentos nenhuma importância. Logo após a tevê iraquiana ter exibido imagens de Saddam Hussein andando pelas ruas de Bagdá e sendo bem recebido pelos iraquianos, o general Colin Powell disse o seguinte a jornalistas que o abordaram em seu périplo para explicar como o terror/imperial vai proceder no pós-guerra: "as imagens de Saddam ao lado do povo não vão modificar o moral das tropas anglo-americanas".
 
A declaração por si só vale como autenticação das imagens. É uma primeira certeza. Outra, a de que pouco importa para os americanos o que pensa, ou deixa de pensar o povo do Iraque: importa o que pensam os terroristas da Casa Branca e sua obsessão pelo "pavor e choque", tudo com o petróleo como pano de fundo.
 
A invasão do Iraque deixa exposto o preconceito hipócrita que orna as civilizações contemporâneas. Um tresloucado veste-se de emissário de Deus e dita ordens ao resto do mundo. É o mesmo discurso de Hitler: a superioridade de uma raça. Árabes, africanos, asiáticos e latino-americanos são inferiores, devem aceitar a supremacia da coca-cola. Europeus que se cuidem, podem vir a se deixar "contaminar" por "idéias estúpidas", como disse Bush. Paris está perdendo o charme.
 
Em 1925 cristãos fundamentalistas cantavam em Dayton, no estado do Tennessee: "vamos enfocar John Thomas Scope numa macieira azeda. O evangelho do Senhor prevalece".
 
John Thomas Scope era um professor de ensino médio e havia falado a seus alunos sobre Charles Darwin. Por isso ia ser enforcado. O julgamento transformou-se num fato nacional e levou a cidade a ocupar manchetes enquanto durou. O "Sun", um jornal da cidade de Baltimore, por instâncias do jornalista Henry Louis Mencken, resolveu assumir a defesa do direito de ensinar Darwin e contratou um dos maiores criminalistas à época, Clarence Darrow. Willian Jennings Bryan, um ultraconservador, três vezes candidato à presidência dos Estados Unidos foi à cidade atuar ao lado do promotor, no que chamou de "monumento de 10 mil anos a Deus".
 
Scope, que iria ser queimado numa "macieira azeda", para o triunfo do evangelho, acabou sendo condenado a pagar a multa de 100 dólares. Dayton virou motivo de chacota nacional e William Jennings Bryan, sem condições de disputar a quarta eleição presidencial, terminou o julgamento ridicularizado, morreu uma semana depois. Registre-se, à guisa de ilustração, que o candidato presidencial defendia a tese que o homem não era um mamífero, pois não era um animal, mas "criatura de Deus". Para Bush e sua turma, iraquianos, tanto quanto árabes, africanos, asiáticos, latino-americanos, são mamíferos. Devem ser tratados como tais, como animais.
 
A televisão, no mesmo instante que mostrava Saddam percorrendo as ruas de Bagdá, mostrou "criaturas de Deus" empurrando uma espécie feminina de animal árabe, fazendo-a ajoelhar-se, enquanto procediam a uma revista: Três "criaturas de Deus" pelo menos contra a fêmea, digamos assim. O crime? Ter abrigado compatriotas que lutavam para defender o país invadido por ordens divinas transmitidas a Bin Laden, quer dizer, a Bush.
 
Freud chamou a "civilização contemporânea" de hipócrita. Pode ser tomado num contexto estrito, o da Psicanálise, mas pode ser tomado num contexto amplo, o da própria Psicanálise, no que "eu vos trago a peste". A revolução que se opôs à castração de idéias, sentimentos, desejos, vontades, direitos inclusive.
 
Donald Rumsfeld acredita que não. É anterior a Freud. Trata os que considera histéricos com choque, logo com pavor. Freud disse também que "a conformidade com os preconceitos é hipocrisia". A diplomacia segue um caminho. A vida tem outro caminho. A essência do ser humano rejeita a boçalidade travestida em manto sagrado de liberdade e justiça. A imagem de Powell falando do "moral" das tropas, é a de um ser despersonalizado, descaracterizado como humano e que não se importa de queimar hereges "numa macieira azeda". É tido como o lado "bom" do lado mau.
 
A invasão terrorista/imperial do Iraque tem deixado de lado alguns fatos importantes, como as pressões sobre o governo do Equador, ou da Bolívia e os preparativos para maior intervenção na guerra civil colombiana. Como pouco espaço tem sido dedicado à limpeza que outro ser divino, Ariel Sharon, faz em territórios palestinos. De um lado "criaturas de Deus", de outro mamíferos. Ou o terror/imperial prosseguindo em sua "liberdade duradoura" no Afeganistão. E mundo afora.
 
O que Powell está fazendo é só um dando um recado ao resto do mundo, a partir da Europa, uma tentativa de minimizar o impacto da estupidez norte-americana (afinal, Aznar, Berlusconi e Blair vão enfrentar eleições, hoje ou amanhã) no Iraque. O recado é simples: a presa é nossa, logo o petróleo é nosso. O resto vem a reboque. Ou não vem, depende de uma decisão: ou "criatura de Deus", ou mamífero.
 
A invasão do terrorismo/imperial parece estar entrando num momento decisivo no Iraque. E é também um momento decisivo para o resto do mundo, sobretudo os que não têm o dom de conversar com Deus, como Bin Laden, ou Bush.
 
A opção entre marcharmos com as "criaturas de Deus" e seus desígnios de liberdade e justiça, ou, de nos revelarmos mamíferos como os iraquianos, os africanos, os asiáticos, os europeus, os australianos, os latino-americanos, todo o resto, fora do mundo de uma Hollywood feérica em seus delírios terroristas e imperiais.
 
Eu me recordo que anos atrás, alguns bons anos, fui comentar uma luta de Sony Liston e um jornalista, após o massacre que Liston impôs a seu adversário, perguntou-me: será que ele tem adversário? Eu respondi: "sei lá, vamos esperar um pouco, ele é só um mastodonte que sobreviveu à extinção da espécie".
 
Anos depois Muhamad Ali nocauteou Liston em duas oportunidades. Ali não era uma "criatura de Deus" aos olhos do terror/imperial. Liston era. Morreu drogado e com uma arma ao seu lado, ao lado da cama. Antes de ser campeão fora presidiário, cumprira pena por assalto a mão armada. Não percebeu, claro não ouviu Colin Powell dizer que a aparição de Saddam "não modifica o moral das tropas anglo-americanas". Não fez, nunca, idéia que ele também era um mamífero, mero instrumento de umas poucas "criaturas de Deus" a espargirem mandatos divinos pelo mundo. Como os robôs que invadiram o Iraque achando que seriam recebidos com flores, pois Saddam é o demônio. Lhes foi dito isso.
 
O que fazem? Recolhem os lucros queimando infiéis "numa macieira azeda..." Para o triunfo do evangelho/dólar.
 
 


Laerte Braga é jornalista e analista político em Juiz de Fora/MG. Este artigo foi publicado originalmente na revista virtual "La Insignia" em http://www.lainsignia.org/2003/abril/int_042.htm